Nos posts anteriores dessa série sobre as funções da escola em tempos de covid-19 (leia aqui, aqui, aqui e aqui), colocamos em evidência a relação entre a forma e os ingredientes do bolo: a escola, enquanto instituição, possui mecanismos desenvolvidos ao longo de século que se comprovaram adequados para cumprir a sua principal função, que é a de promover o desenvolvimento cognitivo das crianças.
Hoje sabemos que esses mecanismos estruturais e não cognitivos são meritórios em si e importantes para os indivíduos e para a formação de capital humano. Mas também sabemos que há outras formas eficazes de ensino – que não apenas o ensino presencial. O fato de que a escola brasileira, especialmente a escola pública, não vem cumprindo seu papel de forma adequada não tira a validade dessas afirmações.
Nos próximos anos, caberá à escola assimilar e digerir esses novos desafios. O “velho normal”, embora consistente em seus pilares, não funcionou no Brasil por uma série de razões. A mais importante é que as políticas adotadas não conseguiram atrair e manter no magistério jovens de alto talento – matéria prima essencial para que a escola possa mostrar o seu insuportável brilho, na bela releitura que Olga Pombo faz da análise de Hannah Arendt sobre a crise da educação. Portanto, o “velho normal” não constitui um bom ponto de partida. Mas não é este o foco desta série de posts.
O desafio apresentado é duplo. De um lado, a pandemia nos deu oportunidade de refletir sobre as condições que levam o bom ensino presencial a funcionar. De outro, deixou claro que o ensino à distância não consiste apenas em reproduzir o modelo de ensino presencial: seu êxito vai depender de nossa capacidade de entender o que torna eficaz o ensino presencial e aprender a utilizar as possibilidades da tecnologia para (a) fazer o que não conseguimos no ensino presencial e (b) incorporar às tecnologias as práticas pedagógicas que tornaram o ensino escolar à prova do tempo.
Este é um processo lento que requer aprendizagem. Nesses poucos meses, já vimos um pouco de tudo: tentativas de replicar aulas expositivas, tentativas de criar situações mais ou menos realistas de interação. Muito comuns são tentativas de ocupar o tempo com atividades triviais e desconectadas, a pretexto de manter as interações entre professores e alunos, como se o importante fossem apenas as interações e não o conteúdo que elas veiculam. Essas iniciativas podem ser válidas e importantes, mas possivelmente de baixa eficácia. Não captam a essência do ensino presencial nem do ensino à distância.
Um desafio é estender o ensino presencial com bons professores usando novos meios. É o que vêm procurando fazer algumas escolas privadas. Outro é escolher alternativas tecnológicas robustas para suprir e substituir, no todo ou em parte, a lacuna criada. É o que vemos, por exemplo, na iniciativa de alguns estados – notadamente o Estado de São Paulo – com a proposta de ensino à distância. Um terceiro será o de estender estratégias existentes de ensino estruturado para a modalidade não presencial, como vêm fazendo muitas instituições privadas de ensino superior já acostumadas com o EAD ou municípios já afeitos ao uso de estratégias de ensino estruturado.
A pandemia abriu as portas para repensar a escola. Há espaço para vivermos no melhor dos mundos (ou pelo menos num mundo melhor), conciliando as virtudes intrínsecas do modelo escolar com as virtudes das novas tecnologias – muitas delas ainda desconhecidas ou inexploradas. Nesse mundo de incertezas, parece surgir uma certeza: a sabedoria estará na capacidade de conciliar a robustez do modelo escolar com a flexibilidade do modelo tecnológico. E isso exige conhecimento profundo de ambos.
Essas são reflexões importantes para repensar o “novo normal”. Essas, sem dúvida, são missões importantes da escola. No Brasil, a escola cumpre mal – e muito mal – sua função principal, que é a de promover o desenvolvimento cognitivo. Mas hoje também sabemos que para promover o desenvolvimento cognitivo é importante também cuidar desses outros aspectos. Só que um depende do outro – daí a primazia do cognitivo na definição da escola.
No curto prazo, as escolas precisam se preparar para reabrir, acolher os alunos, recuperar o tempo perdido. Também precisam se preparar para eventuais novos fechamentos. Mas, no longo prazo, interessa que a escola, especialmente a escola pública, se dê conta de que sua missão principal é promover o desenvolvimento cognitivo de forma harmônica com o desenvolvimento das habilidades psicossociais.
A pandemia e o ensino híbrido trazem de volta ao centro das preocupações um dos objetivos mais centrais da escola: promover a autonomia do aprendiz. Isso deverá provocar profunda revisão no currículo e no desenvolvimento robusto de habilidades básicas e de estratégias que permitam ao aluno aprender a aprender.