Em um contexto de vulnerabilidade social, onde geralmente o livro é tido como algo muito distante da realidade das famílias, um programa de incentivo à leitura transformou a vida de pais e filhos. Trata-se de uma intervenção no município de Boa Vista (RR) coordenada pelo Instituto Alfa e Beto em parceria com pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Nova York. Por meio do programa, as famílias faziam o empréstimo semanal de dois livros e os pais recebiam mensalmente treinamento sobre como realizar a leitura com seus filhos pequenos, que tinham entre dois e quatro anos de idade.
Ao fim de quase um ano do programa, uma avaliação revelou resultados surpreendentes: as crianças apresentaram ganhos expressivos de vocabulário, habilidades cognitivas e inteligência (QI). E ainda: os episódios de punições físicas dentro de casa diminuíram consideravelmente. Esses e outros dados foram divulgados recentemente pela revista científica Pediatrics, uma das mais importantes do mundo a respeito do desenvolvimento infantil.
Walfrido Neto, pesquisador do Instituto Alfa e Beto e um dos coordenadores da pesquisa, conta, na entrevista a seguir, sobre as dificuldades em fazer da leitura um hábito em contextos de pobreza, o entusiasmo dos pais diante das novas descobertas e a oportunidade que o Brasil tem de levar esta experiência a diversas localidades. Confira:
Intervenções como a relatada pelo estudo acontecem em um contexto em que os pais têm pouca ou nenhuma familiaridade com livros ou com o hábito da leitura. Como esse desafio foi superado especificamente no caso da pesquisa?
R: No princípio, percebíamos claramente que muitos pais não tinham intimidade com os livros. Mas as reuniões de treinamento, as orientações sobre como qualificar o momento de leitura com os filhos e as trocas de experiências entre as famílias se revelaram uma experiência transformadora. O que se constatou foi uma motivação crescente em querer cada vez mais estar ao lado dos filhos participando do desenvolvimento deles. O próprio livro foi o grande instrumento dessa mudança.
Levando em conta a intervenção como um todo, quais foram as maiores dificuldades da pesquisa?
Sem dúvida, o grande desafio foi garantir a participação de um número expressivo de famílias no estudo. Uma grande parcela dos pais tem tarefas diárias pouco flexíveis e delegam o acompanhamento escolar de seus filhos a familiares, vizinhos e até amigos. Mas, com o apoio das coordenadoras das Casas-Mãe [creches de Boa Vista onde aconteceram a intervenção], driblamos esta dificuldade e conseguimos alcançar um bom número de presença nas reuniões periódicas de treinamento. Mesmo os que não podiam participar tinham uma oportunidade extra de conversa com a nossa equipe para não perder nenhum detalhe dos conteúdos aprendidos.
A intervenção em questão foi realizada dentro de um contexto educacional, de creche. Em que medida você acredita que isso facilitou o envolvimento das famílias com a leitura?
R: O trabalho desenvolvido pelas Casas-Mãe nos ajudou muito no acesso às famílias, que já tinham em sua prática as reuniões periódicas. Isso foi um facilitador para alcançar nossos objetivos no treinamento dos pais. A partir daí, disseminar a prática da leitura ficou mais fácil na medida em que os pais iam experimentando em casa os momentos agradáveis de interação com seus filhos.
Quais poderiam ser as dificuldades em reproduzir esta intervenção em outros contextos, maiores e mais complexos?
R: Penso que a dificuldade se daria no controle e acompanhamento, que precisa ser rigoroso. Por outro lado, sabemos que é possível reproduzir modelos semelhantes em políticas públicas de grandes centros. Para isso são necessários um bom gerenciamento e equipe qualificada. O que o Brasil precisa é de boa vontade e iniciativas como essa, que realmente fazem a diferença.
O que mais te surpreendeu nesta intervenção?
R: Além dos ótimos resultados, sem dúvida nenhuma foi muito bom perceber que, em um contexto onde geralmente o livro é tido como algo chato e muito distante da realidade das famílias mais humildes, os pais puderam enxergá-lo como um importante aliado na interação e conexão de qualidade com os filhos. Isso nos faz acreditar que é possível transformar realidades desfavoráveis com iniciativas bem embasadas, planejadas e coordenadas.
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