Tecnologia na educação. O tema vem sendo bastante debatido no Brasil e no mundo. O desafio é usar ferramentas como computadores e tablets a favor da aprendizagem uma vez que diversos estudos mostram que, se não for bem utilizada, a tecnologia pode ser prejudicial para a educação.
Sobre esse tema, a revista Veja conversou recentemente com Ronaldo Mota, professor emérito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ex-secretário de desenvolvimento tecnológico e inovação no Ministério da Ciência e ex-secretário de ensino superior do Ministério da Educação. ”Os alunos já podem estudar em casa e até obter diploma pela internet. Mas muitos professores ainda não perceberam esse movimento: serão engolidos pela tecnologia e perderão a atenção dos estudantes”, diz Mota, que acaba de lançar, em coautoria com David Scott, professor da universidade de Londres, o livro Educando para Inovação.
Confira a entrevista completa*:
Em Educando para Inovação, o senhor afirma que as mudanças a que assistimos hoje não são apenas tecnológicas e que esse movimento impulsiona também uma revolução de conceitos. Quais ideias estão em transformação?
Inovação é muito associada a equipamentos e maquinário, mas as grandes mudanças deste século não têm necessariamente essa característica. Tomemos como exemplo uma inovação em outra área: o Cirque du Soleil. A partir do conceito tradicional do circo, o grupo canadense promoveu uma reestruturação radical e formatou um novo produto, criando um novo público. O conceito tradicional de inovação parte da ideia de que existe, antes de tudo, uma demanda para um produto ou processo. O que estamos vivendo neste século, porém, é o aparecimento de mudanças que não provêm da necessidade. Elas são tão revolucionárias que induzem a demanda após serem criadas. O tablet não foi feito após uma consultoria descobrir que havia demanda por computadores não portáteis. Ele surgiu como um produto inovador e criou a demanda a partir dele. Talvez você não necessite de uma impressora 3D agora, mas daqui a três anos vai querer uma em casa. O produto convence você de que é impossível viver sem ele.
Como a escola se insere nesse contexto de mudanças aceleradas? O que significa educar para a inovação?
Significa que a escola precisa formar pessoas aptas a viver nesse cenário de constante inovação. No modelo fordista (sistema predominante no séxulo XX marcado pela linha industrial de produção), o papel da educação era formar técnicos competentes, aptos a atuar na produção tradicional para desenvolver tarefas com eficiência. Definitivamente, educação não é mais isso. O mundo não é mais fordista. Hoje, o sucesso ou não das empresas está associado diretamente à capacidade de inovar. O problema é que a escola segue se preparando para o antigo modelo. É como formar profissionais competentes que podem trabalhar em uma gráfica em vez de formar designers capazes de atuar em várias plataformas de comunicação. As instituições de ensino ainda não são, em geral, capazes de fazer esse raciocínio, pois carregam um atraso intrínseco. A título de comparação, tomemos o que aconteceu na área financeira nos últimos 30 anos: os bancos de hoje em nada lembram as instituições do passado devido à ascensão tecnológica. Enquanto isso, a escola permaneceu absolutamente a mesma. Ainda mantemos a figura clássica do professor que entra na sala de aula e apresenta o conteúdo para os alunos como se eles não soubessem nada. Isso, porém, não deve nos dar a ilusão de que a escola não será transformada: ela será.
Que tipo de transformação será essa?
O modelo de escola que conhecemos hoje será completamente extinto. O papel do professor, também. Ele poderá até receber outra denominação, como “designer educacional”, um profissional dedicado à organização de conteúdos. Mas ele não poderá fazer essa tarefa sozinho: o processo de ensino e aprendizado será cada vez mais coletivo. O designer educacional de física que se propuser a colocar o conteúdo de aula em uma plataforma on-line contará com ajuda de gente que saiba usar a plataforma, alguém que entenda de design, usabilidade e ferramentas no ambiente virtual. Não será uma pessoa só, vai ser um time. No começo do processo de mudança, provavelmente ainda contaremos com um professor clássico, que domina o conteúdo de uma disciplina. Mas ao lado dele, veremos um menino de 14 anos, responsável por fazer a interface gráfica da plataforma. É um fenômeno que já está acontecendo: as grandes funcionalidades dos portais educacionais são desenvolvidas hoje por jovens que dominam os sistemas digitais graças à afinidade que possuem com o universo dos games. Se resolver ficar sozinho, o professor perderá essa corrida.
Nesse cenário, como será o ensino?
Grande parte dos jovens já aprende parte do conteúdo escolar em canais que não dependem da escola. Os alunos já podem estudar em casa e até obter diploma pela internet. Mas muitos professores ainda não perceberam esse movimento: serão engolidos pela tecnologia e perderão a atenção dos estudantes. Não é o fim da escola, mas uma chance que se apresenta para aqueles alunos que não aguentam permanecer em sala de aula e que procuram mecanismos alternativos para adquirir o próprio conhecimento. Há muitos adolescentes criativos, que serão profissionais muito competentes e que simplesmente vivem em conflito com a escola. É um processo que vai acontecer cada vez mais. Até pouco tempo, existia um conflito do professor, que era alguém não digital, com o aluno, um nativo digital. Já estamos na fase seguinte, do não diálogo. As crianças já chegaram a uma etapa em que abstraem o conflito e simplesmente aprendem por conta própria, independente da escola. Seria um erro concluir que a escola não é mais importante. Ela é, mas desde que reconheça a existência do novo processo e que saiba se inserir nessa realidade. Se a escola entender isso como um confronto, vai perder.
Se a escola não mudar, a evasão de alunos vai crescer?
Sim. A escola já enfrenta esse fenômeno, ainda que se trate de uma evasão não contabilizada. O aluno é deixado pelos pais na escola, senta lá por algumas horas e finge prestar atenção às aulas. O professor, por sua vez, altamente desestimulado, deixa o aluno ali, muitas vezes evitando o conflito. Quando olhamos os resultados numéricos desse modelo educacional, concluímos que o ensino vai mal. Sim, está ruim, mas é mais grave que isso. Temos dois conflitos acontecendo ao mesmo tempo: o ensino tradicional vai mal no Brasil e vai mal em si. Para superar essa crise, precisamos melhorar a qualidade de ensino e, simultaneamente, transformá-lo. O Brasil tem uma real oportunidade de dar um salto significativo e mais rápido do que outros países se entender a importância da inovação.
Por quê?
Tomemos como base os resultados do exame do Pisa (mais importante avaliação educacional do mundo, realizada em alunos com 15 anos de idade), da OCDE. A Finlândia está sempre nos primeiros lugares da prova, que avalia o ensino tradicional. Qual a consequência? Os professores finlandeses morrem de medo de mudar seu método de ensino: afinal, quem quer mexer em time que está ganhando? A Finlândia pode não conseguir enfrentar os desafios da inovação com tanta facilidade. O Brasil, por sua vez, não tem motivo para temer a mudança. Afinal, se olharmos para o ensino médio brasileiro, podemos afirmar que não há como piorar. Por isso, temos um campo vasto para aplicar metodologias revolucionárias. O Brasil tem 200 milhões de habitantes e 104 milhões de usuários da internet, que em média navegam mais do que pessoas de outros países. Temos uma população jovem, com nível de tolerância alto e flexibilidade diante de experimentos, elementos que favorecem a adaptação. Se fizéssemos disso um terreno para mudanças educacionais, provocaríamos uma grande transformação.
Quais os caminhos para a inovação?
Precisamos usar metodologias que valorizem a aprendizagem independente. Em caminho contrário, o Brasil deve ser o campeão mundial da aprendizagem dependente. Desde a pré-escola até o pós-doutorado, o que fazemos é estimular o estudante a ser dependente do professor. Por que o professor que termina o pós-doutorado na universidade tem medo de sair do laboratório? Porque ele é dependente. Nos países mais desenvolvidos, o estudante é estimulado a encontrar seus próprios caminhos. Aqui, criamos uma estrutura de dependência tão grande que as pessoas são estimuladas a não abdicar da zona de conforto. O que mais precisamos é do oposto disso. Quando isso ocorre, temos a rebelião à que estamos assistindo, sem interferência do Estado, dos pais e muito menos da escola: essa rebelião é movida pela juventude à procura de mecanismos alternativos. Isso explica o sucesso de serviços de aprendizagem on-line como o Veduca, que já tem 3,5 milhões de inscritos.
Como o senhor avalia projetos que tentam colocar o tablet na sala de aula?
Na maioria, são frustrantes, porque são feitos por gestores escolares que não são do campo da tecnologia digital aplicada à educação. Daí, cena comum, os pais pagam pelos tablets e, como as estatísticas comprovam, eles ficam jogados em casa. Em geral, os alunos recebem o aparelho com um material antiquado, com reproduções de apostilas idênticas ao material impresso. Mas a questão vai muito além do produto. O hábito de estimular o aluno a estudar em casa depois de ver o conteúdo em sala aula é falido, não há a menor chance de dar certo. A única forma de preparar alguém para a inovação e para a aprendizagem independente é oferecer o conteúdo antes da aula e fazer com que os momentos presenciais e coletivos passem por um filtro: só participam desses momentos aqueles que demonstrarem o mínimo interesse. Se a criança sequer tocar no conteúdo antes, ela simplesmente não deveria participar do convívio. Sabemos, por vários experimentos, que se metade da turma estiver prestando atenção e a outra metade não estiver, a parte desinteressada contamina o restante do grupo e o resultado é um desastre. Se o professor usar um filtro inicial baseado em interesse e realizar os momentos coletivos somente com aqueles que demonstraram o mínimo de interesse, os resultados vão lá para cima.
E o que o professor faria com o estudante que não se interessa?
Ele pode mandá-lo para a biblioteca, para uma sala de informática, para qualquer outra atividade. Em uma metodologia tradicional, mesmo que o professor tenha toda a rotina sob seu controle, ele precisa reprovar aquele que não acompanhou o grupo. Isso não é negativo da mesma maneira? Uma nova metodologia implica mudança de cultura. Vai ser normal que o aluno assuma que não pode assistir à aula porque não se preparou para ela, e terá que ser aceitável tanto para o gestor escolar quanto para os pais. Na próxima aula, ele vai se preparar para participar.
Que mudanças de conceitos são necessárias para a transformação de que o senhor fala?
Todo o processo educativo tradicional é baseado na cognição, ou seja, como se aprende e como se ensina. O mais importante no futuro será a metacognição: o aluno terá que entender o processo ao que está submetido e conhecer seus avanços, obstáculos e deficiências. Ele precisa se enxergar no processo educacional. Isso abre a porta para um novo ponto: a classe não se dividirá mais entre aqueles que sabem e os que não sabem, mas dará espaço para um terceiro, que não sabe o conteúdo, mas sabe onde encontrá-lo. No mundo atual e futuro, é mais relevante a atitude de uma pessoa diante de uma pergunta para a qual ela não tem resposta, porque o acesso à informação não é mais crítico. O professor tem que esquecer essa ideia de que vai disputar espaço com a tecnologia. Não há chance de ele dominar mais esse tema que um jovem. Ele tem que achar mecanismos para dizer ao aluno: “Eu não sei essa linguagem como você sabe, mas eu estou disposto a compartilhar o que eu sei e aprender com você.” Mas fazer isso exige um alto nível de maturidade e metacognição para entender o papel de cada um. Ele não pode mais chegar na aula e dizer que sabe mais, pois não sabe mais sobre certas áreas, como as tecnologias digitais.
Não é, de fato, o que acontece hoje nas escolas, certo?
Não, ainda temos a maior parte dos professores pedindo que seus alunos desliguem o celular durante as aulas. Mas eles não conseguem, cada vez que ele vira para frente, o estudante está lá teclando. O problema real não é esse, os jovens conseguem perfeitamente acompanhar os dois e não haverá como mudar isso. As crianças não vão mais aprender equação de segundo grau na escola. Elas vão procurar um vídeo, com um bom professor, e vão aprender na hora que querem, como querem, com algum nível de interatividade. O espaço tradicional de ensino hoje mais se assemelha à tortura do que ao ensino.Tenho a esperança de que a escola vá reconhecer esse movimento e se reconceitualizar.
Quais os avanços vistos em outros países?
A Inglaterra é um país que está avançando muito. Eles fizeram uma ação interessante no ensino médio. Mudaram a obrigatoriedade de certas disciplinas, como química, física e biologia: não é mais necessário fazer as três ao mesmo tempo, e o aluno pode ter sua motivação voltada apenas para biologia, por exemplo. Mas a maior inovação está em garantir uma preparação dentro dessa disciplina para que o professor introduza elementos de química e física. O aluno pode estudar pressão, conteúdo da física, a partir do estudo da capilaridade das plantas, um capítulo da biologia. Isso introduz, de forma agradável, conceitos que são relevantes. O professor tradicional pode dizer que desse modo o estudante não aprende toda a física e a química. Mas eu pergunto: por acaso, ele aprende tudo com o atual sistema de aulas? Provavelmente não, e ainda deixa a escola com raiva das ciências. Se você apresenta um modelo em que o aluno desenvolve apreço pelo método científico e se sente parte do processo, não importa se ele escolheu cursar uma, duas ou três disciplinas, mas, sim, o fato de que, ao escolher, ele possa dizer: “Eu sou corresponsável pelo processo.”
*Para ler a entrevista original, acesse: https://goo.gl/NbVMMg