Nota do Instituto Alfa e Beto:
Este artigo foi publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo
Em boa hora o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) decidiu questionar o projeto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ministério da Educação (MEC) em relação ao ensino médio. As propostas do Consed representam um avanço importante, mas precisam ser aperfeiçoadas. O simples fato de o Consed questionar os fundamentos do projeto revela que houve falta de um verdadeiro debate, dada a forma como o MEC vem conduzindo o assunto – tema posto em evidência em editorial de 7/3 (A3) do Estado.
Os principais avanços são, primeiro, a proposta de diversificar o ensino médio, permitindo que os estudantes escolham suas áreas de formação. Com isto, a base nacional só ocuparia uma parte do tempo escolar, dando aos estudantes a possibilidade de escolher e se aprofundar numa área de interesse próprio. Segundo, incluir o ensino técnico e profissional como uma das opções de formação, e não, como é hoje, cursos adicionais que se somam ao currículo tradicional obrigatório. Terceiro, a proposta de mexer no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que é incompatível com um ensino médio diversificado. Quarto, tornar obrigatório o ensino de inglês. Finalmente, o modelo proposto acaba com a tirania das disciplinas obrigatórias, que seriam substituídas por áreas de formação com matérias opcionais. Um quinto avanço é propor que o MEC abra mão do açodamento, estabeleça prazos bem maiores para o trabalho e faça pouca coisa de cada vez, para aprender no processo e não criar uma rigidez desnecessária e que pode ser difícil de reverter.
O Consed não foi feliz, no entanto, ao dizer como esses avanços devem ser feitos. Ele propõe que a parte comum do currículo ocupe de metade a dois terços das 2.400 horas obrigatórias do ensino médio, mas não diz que matérias deveriam constar dessa parte nem explica como chegou a essa divisão de horas. Não resta dúvida de que todos os alunos de ensino médio devem continuar estudando e se aprofundando em português, matemática e inglês, e talvez uma parte mais geral de ciências sociais, com noções de economia, direito e sociologia, deixando os outros temas para as áreas opcionais de formação. Isso dificilmente tomaria mais do que um quarto do currículo, sob pena de prejudicar a ideia central de dar tempo aos estudantes para se aprofundarem em suas áreas de interesse.
Nesse aspecto, faltam definições preliminares sobre o que é opcional e como operacionalizar. A literatura mostra que a escolha é importante para o estudante e a prática mostra que há um limite no que diferentes escolas podem oferecer como opção. Num país com milhares de municípios de pequeno porte a questão precisa ser muito bem pensada para tornar viáveis as propostas. Por outro lado, não se justificam currículos estaduais e municipais – desde que as diretrizes gerais sejam bem feitas.
O Consed se equivoca quando propõe que as áreas opcionais sejam linguagens, matemática, ciências naturais e ciências humanas. Linguagens (português e inglês) e matemática devem ser da parte comum, e as opções de formação poderiam ser as ciências físicas e tecnológicas, ciências biológicas, ciências sociais (economia, sociologia, direito), que não se devem confundir com as humanidades (literatura, arte, filosofia), e a formação profissional e técnica, voltada para a capacitação profissional. Também poderia criar espaços para cursos com temas definidos, sem necessariamente desembocar em habilitações profissionais, como se faz nas Career Academies dos Estados Unidos.
Isso precisa ser mais bem discutido. Uma alternativa, proposta recentemente por Kenneth Baker, ex-secretário de Educação da Grã-Bretanha, é de uma área técnica, com forte orientação prática, de engenharia e computação; outra mais acadêmica, que os ingleses chamam de “liberal arts”; uma terceira, orientada para esportes e as artes criativas; e uma quarta voltada para as carreiras profissionais mais práticas, combinando formação geral com sistemas de aprendizagem no trabalho. O ponto central é que os jovens chegam ao ensino médio com diferentes interesses e níveis diferentes de formação, não podem ser todos colocados na camisa de força de um currículo único, e precisam escolher caminhos, com a liberdade de poderem mudar de ideia mais adiante.
Também falta um debate e uma participação mais efetiva do Sistema S e do setor produtivo, tanto na discussão quanto na viabilização econômico-financeira do ensino médio diversificado. A formação profissional exige um ethos e uma cultura próprias, e o Brasil dispõe de uma base invejável de instituições que poderiam fazer isso de maneira muito mais eficaz e eficiente do que as secretarias de Educação.
Mexer no formato do ensino médio exige também mexer no Enem, que precisaria ser dividido em uma parte geral, de português, matemática e inglês, e exames separados de ciências físicas e tecnológicas, ciências biológicas, sociais e humanidades. Preocupado com a falta de avaliações por escola para o ensino médio, o Consed propõe que o Enem se torne obrigatório para todos os alunos, mas uma prova geral desse tipo, censitária, é incompatível com um exame de seleção para as universidades, como é o Enem atual.
Tudo isso precisaria ser bem analisado e debatido, a partir de premissas claras e da análise das implicações práticas para implementar uma reforma dessa natureza. A reforma é necessária e factível, pois é assim que funciona nos países desenvolvidos. Mas ainda é muito cedo para cristalizar propostas em projetos de lei – mais prudente seria estimular as redes estaduais a criarem novas formas de ensino médio dentro de um novo marco, e aprender a partir da experiência.
O Consed propõe uma grande revolução no ensino médio, que é necessária, mas não pode ser feita de afogadilho. A reforma é necessária, mas ainda é cedo para cristalizar propostas em projetos de lei.
*Simon Schwartzman e João Batista Araújo e Oliveira são, respectivamente, membro titular da Academia Brasileira de Ciências e presidente do Instituto Alfa e Beto.
**Foto: Cecília Bastos/USP Imagem