Este artigo faz parte de uma série que debate em dez capítulos questões fundamentais para o avanço da educação no Brasil. As publicações acontecem em comemoração aos 10 anos de atuação do Instituto Alfa e Beto.
Leia AQUI a série completa de artigos. Junte-se a nós nesse debate. Deixe seu comentário abaixo. |
Quem casa, quer casa, costuma-se dizer. E quem tem filhos, no mundo atual, um dia, e cada vez mais cedo, terá que pensar em Escola. E aí começa um problema.
A maioria de nós sabe, muitas vezes por informação indireta – o que pode toldar a percepção real do problema – que os indicadores de qualidade das escolas públicas brasileiras são preocupantes, para dizer o mínimo. Na verdade, eles são desanimadores. Já sobre os indicadores de qualidade das escolas da rede privada de ensino sabemos menos. Pior. Nosso juízo sobre a qualidade das escolas privadas parece ter um viés. Para o senso comum a escola pública é de baixa qualidade. Ao contrário do que ocorreria com a escola privada. Os dados, entretanto, não confirmam esse juízo. Ao menos integralmente.
Falhas de julgamento em Engenharia e em Medicina costumam desencadear acontecimentos. Eles são, na maioria das vezes, facilmente percebidos. É o que se dá quando um viaduto desmorona. Ou quando a casa, mal terminada a construção, começa a mostrar rachaduras. O paciente pode morrer quando um médico deixa de distinguir, tempestivamente, se uma infecção é viral ou bacteriana.
Falhas de julgamento em Educação são ainda mais graves. No sentido de que os efeitos funestos demoram a ser percebidos. E quando se trata da qualidade da educação escolar em todo o país a questão não é somente pessoal e familiar. É questão nacional. Senão vejamos.
O ritmo e o alcance do crescimento econômico dos países estão relacionados com o capital humano disponível em sua população. Se admitirmos que a busca do crescimento é legítima, desejável, e mesmo necessária, e que, ausente o capital humano, claudicará o crescimento no país, segue-se que a criação do capital humano é de alta relevância.
Ora, a Educação e Instrução são os meios da criação de capital humano. Por isso, as nações, transformadas em sociedades organizadas, sob a forma de Estado, e constituídas em países, instituem sistemas educacionais de educação escolar. Tais sistemas podem assumir variadas formas de organização, funcionamento e financiamento. Mas não há sociedade moderna que não os tenha edificado.
Os recursos consumidos na Educação, em todo país que possui dimensões e população comparáveis ao Brasil são de grande monta. A população escolar brasileira frequentando a Educação Básica é gigante. O total de matrículas em 2013 girava em torno de 50 milhões. Mais de 41 milhões nas redes públicas. Mais de 8 milhões na rede privada. 142 mil escolas. Mais de 2 milhões de professores.
Que perfil cognitivo médio gera, em nossa população infanto-juvenil, a operação de uma estrutura portentosa com a do nosso sistema de educação escolar? A pergunta não é formulada agora somente da perspectiva do interesse, legítimo, dos pais. Ela tem um âmbito expandido. Transformou-se em pergunta que interessa aos pais e ao país.
Não menos do que escrutinar a qualidade de qualquer serviço ou produto que adquirem, pais deveriam saber a quantas anda a qualidade da educação escolar brasileira em geral. Assim, agiriam não somente em defesa de seus filhos, mas, também, em defesa dos interesses do país. Afinal trata-se de cidadãos vivendo sob a égide do Estado de Direito Democrático, com direitos civis e políticos garantidos, na República Federativa do Brasil.
O estado da Educação brasileira
Desde 1995, o Brasil conta com o SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica. Bianualmente, ao final dos Anos Iniciais e ao final dos Anos Finais do Ensino Fundamental, os alunos passam por testes de Língua Portuguesa, ênfase em compreensão de leitura, e Matemática, ênfase em resolução de problemas. Os resultados dos testes são comparáveis ao longo das edições. Assim os dados permitem uma avaliação sobre a evolução, estabilidade ou involução do naipe de competências cognitivas agregado por fase de escolarização.
Em duas décadas, tempo adequado à percepção de tendências no longo prazo, entre 1995 e 2013, foram 10 edições de testes do SAEB. Os números mostram, em geral, duas coisas.
Primeiro, quando olhamos para as proficiências médias em Leitura e Matemática nas escolas públicas de todo o país vemos que elas estavam em níveis desastrosos em 1995. Eram inferiores ao mínimo esperado para os períodos de frequência escolar considerados. As edições do SAEB em 1997, 1999, 2001 e 2003 e 2005 mostraram queda contínua dessas proficiências. A partir de 2007 elas passaram a subir. Até voltarem para pouca coisa acima do patamar ruinoso em que estavam no início do ciclo de aplicação de testes. Isso para a fase dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, atual quinto ano. Lembremo-nos que estamos falando de média. A média que estava em patamar desastroso, abaixo do mínimo esperado, agora está em patamar ruinoso, pouco acima desse mínimo. Isso significa que existe uma multidão de alunos com proficiências muito abaixo do mínimo esperado. Do contrário, a média seria mais alta.
Para os Anos Finais do Ensino Fundamental, atual nono ano, o fenômeno da queda se repetiu. No mesmo intervalo de tempo. Em 2007 também se iniciou uma lenta trajetória de recuperação. Mas, ao contrário do que ocorreu nos Anos Iniciais, as proficiências médias dos concluintes do Ensino Fundamental estiveram, em 2013, abaixo do nível em que estavam em 1995. Aqui o cenário é dantesco. As médias, que já eram inferiores ao mínimo esperado em 1995, caíram, em 2013, para um patamar ainda mais baixo na comparação com 1995.
Segundo, quando olhamos para a proporção de alunos com aprendizado compatível com o mínimo esperado, e isso dá informação mais valiosa para interpretação do que ocorre, vemos o seguinte: ao final dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, menos da metade dos alunos, a saber, 40%, aprenderam o mínimo esperado em Língua Portuguesa. Apenas 35% aprenderam o mínimo esperado em Matemática. Ao encerraram o Ensino Fundamental, somente 23% desenvolveram as habilidades de leitura consideradas adequadas. Em Matemática, o dado é estarrecedor: apenas 11% são capazes de resolver problemas cujo nível de dificuldade não tem nada de mais para quem frequentou escola por ao menos 9 anos.
O Movimento Todos pela Educação, movimento da sociedade civil e empresários, estabeleceu cinco metas a serem atingidas até o bicentenário da independência do Brasil, em 2022. A terceira delas prevê que, até 2021, 70% dos alunos apresentem aprendizado compatível com o adequado para o percurso de escolarização cumprido. Pelo andar da carruagem, nada nos autoriza a esperar seu alcance.
E quanto aos que, concluindo o Ensino Fundamental, passam ao Ensino Médio?
Uma amostra representativa da população escolar com idades entre 15 e 16 anos, em dezenas de países do mundo, desde 2000, a cada três anos, inclusive do Brasil, passa por testes de Leitura, Matemática e Ciências no PISA – Programa Internacional de Avaliação de Estudantes – organizado pela Diretoria de Educação da OECD – Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico. O desempenho médio dos alunos em cada país é calculado e, então, comparado. Os relatórios informam que o Brasil nunca saiu dos 10 últimos lugares na comparação com um número de países em que o teste foi aplicado, 43 na primeira edição e mais de 65 na penúltima, em 2012. E mostram que aproximadamente metade de nossos adolescentes apresenta desempenho em leitura que recai nos dois níveis mais baixos da escala. Em Matemática essa fração é de dois terços.
O PISA pode ter limitações, mas é fonte reputada de informação educacional. E é estrela das avaliações internacionais. Da edição de 2015, cujos resultados serão divulgados em aproximadamente um mês, mais de 70 países participaram.
Alguns alardeiam, com base em relatórios publicados pelo Banco Mundial, e mesmo pela OECD: no PISA, entre as edições de 2000 e 2012, o ritmo da elevação das proficiências médias dos alunos brasileiros foi um dos mais fortes entre os países que experimentaram crescimento em suas proficiências médias nesse período. Mas é preciso dizer que, mesmo que o Brasil dobrasse esse ritmo de elevação das proficiências levaria 25 anos, um quarto de século, para que o desempenho de seus concluintes da Educação Básica se equiparasse ao desempenho dos concluintes da Educação Básica nos países integrantes da OECD. Isso se o desempenho deles passasse esses 25 anos no mesmo patamar em que estão hoje.
Uma análise mais detalhada, e aqui chegamos às portas do que nos interessa, mostra que, comparados somente os resultados dos alunos pertencentes ao estrato com nível socioeconômico mais alto em cada país, o Brasil é um dos que apresentam a menor proporção de população escolar com desempenho enquadrado nos dois níveis mais elevados da escala de proficiências. Nas três áreas avaliadas.
Ora, sabe-se que esses alunos tendem a ser matriculados em escolas das redes privadas. Ou nas melhores escolas das redes públicas, a saber, as escolas da rede federal. Portanto, nossa educação escolar é de má qualidade, em média, também nas redes privadas. Os dados do PISA mostram que o desempenho escolar dos alunos brasileiros oriundos das famílias cujo nível socioeconômico é mais alto é flagrantemente inferior ao desempenho escolar dos alunos do mesmo estrato social nos países da OECD.
Há mais de uma década a imprensa, mesmo que esporádica e timidamente, vinha notando o problema da má qualidade da educação na rede privada. E acabou de repetir a ação agora, em 2016. Ainda que o tenha feito com base em indicador por cujas limitações evitamos citar: o IDEB.
A mesma Diretoria da Educação da OECD responsável pelo PISA, realiza um levantamento mundial em que faz, aos professores e diretores das escolas públicas e privadas de dezenas de países, perguntas sobre as condições de trabalho e aprendizagem nas escolas. Trata-se do TALIS – Teaching and Learning International Survey. Sua primeira edição ocorreu em 2008, em 24 países. A segunda, em 2013, entrevistou professores e diretores de 34 países. O Brasil participou das duas edições. Nessa edição, 14.291 professores brasileiros responderam ao questionário. Os levantamentos ocorrem a cada cinco anos e a próxima edição está programada para 2018.
A leitura dos relatórios mostra outra dimensão grave dos problemas da qualidade nas escolas brasileiras. O Brasil é o país do mundo em que mais os diretores reportam a presença semanal das seguintes ocorrências: cola, vandalismo e ameaça, agressões verbais entre estudantes, ferimentos causados por ação violenta, intimidação e abuso verbal contra professores e funcionários, uso ou posse de álcool e drogas ilícitas. Além disso, o relatório informa que ao menos um quarto dos professores brasileiros dizem despender 40% do tempo em sala de aula tentando manter a ordem e realizando tarefas administrativas.
Como se vê, há outros problemas nas escolas brasileiras. Atos inaceitáveis por qualquer critério civilizatório começam a se tornar comuns. Esse é um ambiente favorável à formação da pessoa e do cidadão? Nele a integridade moral e física das crianças, dos adolescentes, dos professores e dos funcionários estarão garantidas?
O cenário é adverso. E infelizmente, mais uma vez, os dados não dizem respeito somente às escolas mantidas pelas redes públicas.
Educando em casa
Esse é contexto no qual surgem iniciativas heterodoxas. A educação domiciliar é uma delas.
Pode ir do modelo sugerido no Projeto de Lei 3179/2012, em tramitação na Câmara dos Deputados, atualmente na Comissão de Educação, à organização totalmente livre, desescolarizada, em que os pais assumem diretamente, quando querem e podem, além da educação, a instrução dos filhos.
A educação domiciliar vem sendo praticada por um número crescente de famílias no Brasil, ainda não estimado com precisão, inclusive com permissão judicial, pelo menos no caso da minha família. Essa prática pode ficar a meio caminho das duas formas extremas indicadas no parágrafo anterior, envolvendo, por exemplo, a organização de um programa de estudos distinto do estabelecido oficialmente, levado a efeito pelos pais, em casa, por intermédio de leituras dirigidas dos clássicos da Literatura, nacional e internacional, de estudos da Geografia, da História pátria e mundial, das Ciências. Isso pode ser levado a efeito individualmente, por apenas uma família, ou em grupos, por várias famílias que se reúnem e compartilham conhecimentos, recursos e tempo, dedicando-os à educação e instrução de suas crianças.
Pode, também, receber o complemento da colaboração de professores profissionais, a domicílio, ou em cursos livres de Matemática, de Língua Estrangeira que as crianças frequentam. Pode, ainda, receber um suplemento: a prática de atividades esportivas como a natação, o futebol, as artes marciais, que além de favorecerem o desenvolvimento físico e motor, treinam o autocontrole, a disciplina, e, por fim, estimulam as interações sociais.
Nada disso contraria o espírito da Constituição Federal brasileira, que atribui ao Estado e à Família a responsabilidade de educar. Ao contrário, nesse aspecto, a educação domiciliar se ampara no dispositivo da CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, conhecido como Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário, segundo o qual “os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. O Congresso Nacional aprovou, nos termos do Art. 5º, § 3º da Constituição Federal, a adesão do Brasil a esse tratado que versa sobre Direitos Humanos. Assim, ele tem efeito de Emenda Constitucional e suas disposições estão acima das disposições da Lei Ordinária.
Nada disso sonega às crianças o direito a receber uma formação que vise à preparação para o trabalho e para o exercício pleno da cidadania. Nada disso ameaça ou compromete o necessário processo da socialização, como soem afirmar, equivocadamente, educadores profissionais, muitos deles altamente qualificados, mesmo contra as evidências disponíveis. Com efeito, não se tem notícia de uma epidemia de sociopatia, nem de analfabetismo funcional, entre os milhões de crianças e adolescentes educados e instruídos sob essa forma da educação domiciliar em países nos quais ela é aceita e regulamentada. Aliás, não temos notícia de jovens educados em casa nos casos das tragédias de assassinato em massa nas escolas como recorrentemente temos visto, nos EUA, por exemplo, mas também no Brasil, como no caso do ex-aluno de uma escola pública que matou 13 e feriu outros 13 no bairro de Realengo, no Rio de Janeiro, em abril de 2011, ele mesmo ex-aluno da escola.
Nada do que se diz aqui em favor da educação domiciliar é dito em desfavor da necessidade incontornável da existência da educação escolar. Ao contrário. Entre os pais que resolveram trilhar esse caminho muitos há que enquanto o seguem participam do debate público e pugnam por uma educação escolar de alta qualidade para todos, aí incluído o direito à inviolabilidade da integridade, física e psíquica, durante a permanência no ambiente escolar. E manteriam seus filhos na escola se isso estivesse ao alcance perto de casa, em escola da rede pública, ou privada.
Esses pais estão convencidos de que nenhum país pode se autodenominar democrático e livre enquanto aceitar que a posição social e econômica de um só de seus adultos seja determinada no nascimento. Eles sabem que o meio mais eficaz e democrático de quebrar a transmissão intergeracional da pobreza é proporcionar uma educação de alta qualidade a todos, indistintamente. Mas sabem, também, que a liberdade de ensinar e de aprender, e a liberdade dos pais educarem seus filhos segundo suas convicções morais e religiosas, são irrenunciáveis se a sociedade quer merecer a caracterização de sociedade de homens e mulheres livres.
*Luiz Carlos Faria da Silva é professor adjunto do Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá