O professor Simon Schwartzman comenta, em seu blog, as mudanças realizadas nas Diretrizes Curriculares Nacionais e suas implicações positivas e negativas para o avanço da reforma do Ensino Médio.
Recentemente, um grupo de estudiosos do tema – Cândido Gomes, Cláudio de Moura Castro, João Batista Oliveira e Simon Schwartzman – publicou um estudo sobre o novo currículo do Ensino Médio no livro “Fraturas na Base”.
Conforme aponta no post, ainda há mudanças profundas que o novo governo precisa fazer para que a reforma do ensino médio decole.
AS NOVAS DIRETRIZES CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO: O BOM, O RUIM E O INÚTIL
Autor: Simon Schwartzman
Das 16 páginas das Diretrizes Curriculares aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação, os jornais só noticiaram, praticamente, a possibilidade de usar até 20% do tempo em atividades à distância, como se isto fosse o mas importante. Olhando o documento em detalhe, pode-se ver que tem muitas coisas novas e importantes, outras nem tanto, e muita coisa inútil, que acaba tornando o documento difícil de ler e interpretar.
Antes de mais nada, é preciso entender para que serve este documento. O introito cita um emaranhado de leis, artigos, pareceres e despachos que são um testemunho do cipoal que é a legislação brasileira sobre educação, mas não explica com clareza seu objetivo. Existe uma nova lei sobre o ensino médio, aprovada no início de 2017; e a função destas diretrizes é dizer como esta lei deve ser entendida e implementada. Elas deveriam ser um documento escrito em linguagem simples e clara, inteligível para professores e gestores escolares em todo país, e servir de referência para a elaboração de uma Base Nacional Curricular Comum muito mais objetiva e clara do que a proposta pelo Ministério da Educação meses atrás; mas, infelizmente, continua sendo um documento prolixo, cheio de frases e difíceis ou impossíveis de interpretar. No todo, tem muitas coisas boas, algumas ruins, e muitas outras inúteis. Foi o que o Conselho Nacional de Educação conseguiu fazer, e é importante separar ao joio do trigo.
O principal mérito destas diretrizes é que elas reafirmam a ideia fundamental da nova legislação sobre o ensino médio, a diversificação, que está lá no item VII do artigo 5, sobre os princípios gerais que devem fundamentar o novo ensino médio:
“Diversificação da oferta de forma a possibilitar múltiplas trajetórias por parte dos estudantes e a articulação dos saberes com o contexto histórico, econômico, social, científico, ambiental, cultural local e do mundo do trabalho”.
A primeira parte da frase é clara e importante: ao invés de um currículo único e obrigatório para todos, deve haver múltiplas trajetórias, que os estudantes podem seguir segundo seus interesses, condições e disponibilidade da oferta das escolas. Estas trajetórias podem incluir a formação técnica do nível médio, que até agora era tratada como atividade suplementar em relação ao ensino médio regular. A segunda parte do texto, da “articulação dos sabres”, etc., é uma das tantas frases cheias de boas intenções, mas sem interpretação clara e aplicação prática que permeiam o texto, resquícios de um estilo barroco que ainda persiste nos documentos sobre educação no Brasil.
O principal problema é que ele não avança o suficiente no entendimento do que seriam estas múltiplas trajetórias. Vamos voltar a isto mais adiante. Primeiro, é importante ressaltar os méritos.
O segundo mérito é que ele procura se afastar do formato tradicional da educação baseada em aulas expositivas, em que os alunos simplesmente aprendem a repetir o que o professor diz, e abre a possibilidade de uso de uma pluralidade de formas. Os projetos pedagógicos das escolas, descritos no artigo 8, devem incluir
“Atividades teóricas e práticas, provas orais e escritas, seminários, projetos e atividades online, autoria, resolução de problemas, diagnósticos em sala de aula, projetos de aprendizagem inovadores e atividades orientadas”.
E o item 13 do artigo 17 fala em
“Aulas, cursos, estágios, oficinas, trabalho supervisionado, atividades de extensão, pesquisa de campo, iniciação científica, aprendizagem profissional, participação em trabalhos voluntários e demais atividades com intencionalidade pedagógica orientadas pelos docentes; assim como podem ser realizadas na forma presencial – mediada ou não por tecnologia – ou a distância, inclusive mediante regime de parceria com instituições previamente credenciadas pelo sistema de ensino”.
Estas atividades devem ter por objetivo não somente a absorção e reprodução de conhecimentos, mas competências e habilidades na solução de problemas, domínio de princípios científicos e tecnológicos próprios das diversas áreas de conhecimento, práticas produtivas e sociais, capacidade de refletir sobre o que está sendo aprendido, e uso de linguagem apropriada para sua expressão. São coisas mais fáceis de dizer do que de fazer, mas, na medida em que os estudantes se liberem da obrigação de estudar para a maratona do ENEM – outro tema importante tratado nas diretrizes – se torna mais factível sair da camisa de força da educação tradicional.
Um terceiro mérito importante do documento é que ele flexibiliza as formas pelas quais os conhecimentos podem ser reconhecidos e adquiridos, assim como a forma pela quais os professores podem ser recrutados. Esta flexibilização aparece em diferentes partes; através de parcerias entre diferentes instituições, sobretudo para os itinerários de formação técnica; no reconhecimento de competências prévias; na revalidação de estudos feitos em outras instituições nacionais e estrangeiras, etc.
Sobre os professores, o documento reitera a necessidade de licenciatura para ensinar no ensino, médio, e o artigo 29 limita o reconhecimento de notório saber de docentes apenas para atuar nos itinerários de formação técnica e profissional. Mas o artigo 30 abre uma importante janela, ao admitir que “podem ser admitidos para a docência no ensino médio, profissionais graduados que tenham realizado programas de complementação pedagógica ou concluído curso de pós-graduação orientado para o magistério na educação básica”. Dependendo do que seja esta complementação pedagógica, que pode ser bastante prática e objetiva, isto permite trazer para a educação profissionais de diferentes áreas que tenham interesse em ensinar, suprindo a carência de professores que existe hoje sobretudo nas áreas mais especializadas.
O quarto mérito importante é que ele mexe com o atual formato do ENEM. Ao invés de uma prova única, obrigatória para todos, as diretrizes dividem a prova em duas partes, uma geral, correspondente à parte comum de formação que todos os estudantes devem ter, e uma segunda à escolha dos estudantes, conforme seus itinerários formativos. Esta questão do ENEM ainda precisa ser melhor estudada e discutida, mas se trata, sem dúvida, de um avanço em relação ao sistema atual.
Finalmente, as diretrizes incluem um esforço importante, embora ainda insuficiente, de estabelecer como deverá ser o ensino técnico de nível médio. Há um entendimento claro de que este tipo de formação não pode ser dado pelas escolas tradicionais, que não têm a cultura de formação profissional, e por isto são abertas várias janelas para o estabelecimento de convênios e parcerias, para o recrutamento de professores com experiência de trabalho profissional (e daí a necessidade de reconhecimento do notório saber), para sistemas de aprendizagem combinando ensino com trabalhos práticos na indústria, e inclusive para a possibilidade de dar aos alunos “certificados intermediários” equivalentes aos cursos FIC (de formação inicial e continuada) que podem ou não servir de etapa para o diploma de nível técnico completo. O outro avanço nesta parte é estabelecer que os cursos técnicos devem corresponder à ampla Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), e não ao limitado Catálogo Nacional de Cursos Técnicos adotado pelo Ministério da Educação, facilitando ainda a criação de novos cursos experimentais.
O principal problema das diretrizes é que elas não conseguem avançar em relação a um vício de origem da nova lei do ensino médio, que é a adoção de uma classificação totalmente inadequada das áreas de conhecimento adotada no passado pelo Conselho Nacional de Educação, que é utilizada tanto para a definição dos conteúdos da parte de formação comum quanto para a definição dos diferentes itinerários formativos. Esta classificação divide o conhecimento em quatro categorias, a “linguagem e suas tecnologias”, que incluem desde o português até as “linguagens corporais”, como a dança, passando por design, artes cênicas e linguagens digitais; as “ciências naturais e suas tecnologias”, incluindo todas as ciências físicas, biológicas, química, ciências da saúde e tecnologia; as “ciências humanas e sociais aplicadas”, que juntam no mesmo saco temas de filosofia, sociologia, economia, artes e literatura; e “matemática e suas tecnologias”, que fica separada, quando na realidade a matemática é um instrumento central para a grande maioria das diferentes áreas de conhecimento teórico e aplicado.
Esta classificação, quando utilizada para descrever o conteúdo da parte comum de formação, é inócua, mas se torna um problema grave quando se pretende que defina também os possíveis itinerários formativos. Em todo o mundo, os itinerários formativos no ensino médio tendem a ser agrupados em áreas que se aproximam mais das grandes áreas de formação profissional, como STEM (ciência, tecnologia, matemática e engenharia), ciências biológicas e da saúde, ciências econômicas e sociais, artes performáticas, língua e literatura. A matemática não é um itinerário formativo por si mesma, a não ser para os poucos que pretendam ser matemáticos, mas um componente central de formação para os diversos itinerários. Este problema tem sido amplamente discutido desde o momento em que a proposta da nova lei do ensino médio foi levada ao Congresso na forma de Medida Provisória em 2016, mas, por razões difíceis de entender, nunca foi solucionado.
As diretrizes abrem uma janela para sair desta camisa de força, ao prever, o item 10 do artigo 17, que
“Formas diversificadas de itinerários formativos podem ser organizadas, desde que articuladas as dimensões do trabalho, da ciência, da tecnologia e da cultura, e definidas pela proposta pedagógica, atendendo necessidades, anseios e aspirações dos estudantes e a realidade da escola e do seu meio”.
Isto possivelmente significa, na prática, que os sistemas de ensino podem organizar os itinerários como acharem melhor. No entanto, o desejável seria que, a cada itinerário formativo, correspondesse um exame nacional opcional, como parte do ENEM. Assim, haveria um exame para STEM, outro para ciências biológicas e de saúde, outro para ciências econômicas e sociais, outro para artes e literatura, por exemplo, o que o formato atual não permite.
As partes inúteis das diretrizes são as grandes formulações verbais que, ou são genéricas demais, ou são ininteligíveis, ou são simplesmente equivocadas. Esta versão das diretrizes está mais enxuta, em relação a isto, do que outros documentos similares, mas ainda poderia ser mais leve. Fala-se muito de “contextualização” e “interdisciplinaridade” e “transdisciplinaridade”, cujo significado na prática não se sabe qual é. No artigo 6º há um esforço frustrado de definir filosoficamente o que é trabalho, ciência, tecnologia e cultura que não resiste ao menor escrutínio, e que não se sabe exatamente porque está aí.
Existem outras questões importantes que foram levantadas em diversos momentos nas discussões sobre a nova lei do ensino médio, inclusive sobre a parte comum, que terminou sendo uma espécie de versão resumida do antigo currículo tradicional, ao invés de se concentrar nas competências mais gerais de linguagem e raciocínio matemático, deixando os conteúdos mais específicos como “minors” opcionais ou “majors” para os diferentes itinerários formativos.
A nova lei do ensino médio foi um avanço, mas ela evidentemente tem limitações importantes, que se refletem nas diretrizes curriculares aprovadas pelo CNE. Mas é importante identificar o que há de positivo, e seguir adiante. A lei precisa ser colocada em prática, avaliada, e, no futuro não muito remoto, precisará ser reescrita.