De vez em quando o assunto volta à tona. Agora de forma mais drástica. Não se trata mais de acabar só com o ensino da caligrafia: trata-se de acabar com a escrita manuscrita. A Finlândia anuncia que irá substituir o ensino da caligrafia e o uso da letra manuscrita pelos tablets. Será uma boa ideia para a Finlândia? Seria uma boa ideia para o Brasil?
Antes de continuar, faça uma experiência. Aproxime-se de uma pessoa que tenha o hábito de digitar com proficiência e comece a conversar com ela. Possivelmente essa pessoa continuará digitando por algum tempo, até parar e prestar atenção total a você. Tente fazer o mesmo com uma pessoa que está escrevendo à mão: ela não conseguirá prestar atenção em você e continuar escrevendo. Voltaremos ao assunto.
A escrita manuscrita é uma invenção recente – tem pouco mais de dois milênios como forma de escrita e o uso de instrumentos eficientes como o lápis e a caneta não chega a dois séculos. Se acabar, não será o fim do mundo.
Mas há algumas considerações importantes. A invenção dos alfabetos e seu uso para a leitura mudou radicalmente o funcionamento da área visual do cérebro: a área da leitura passou a ocupar a área que antes servia para o reconhecimento visual de objetos e imagens. Isso nos deu um grau elevado de eficiência para ler. E ficamos com menor capacidade e acuidade para reconhecer objetos, afinal não precisamos mais detectar tantas sutilezas para seguir rastros de animais ou para saber se o leão vai ou não nos atacar.
Há evidências de que a escrita manuscrita também cria novas conexões que trazem vantagens importantes para a escrita e para a leitura. Uma delas tem a ver com a atenção. A escrita manuscrita estimula a atenção concentrada na tarefa, mesmo depois que automatizamos a forma visual das letras. A escrita manuscrita também está fortemente correlacionada com o desempenho ortográfico. E este, por sua vez, está associado a uma maior compreensão do que lemos.
Existem vantagens de digitar ao invés de escrever à mão? Há evidências positivas: é mais eficiente, permite correções mais rápidas, a facilidade pode ensejar mais motivação para fazer revisões. Também há evidências de que o acesso a recursos na tela permite organizar as ideias, acessar novas informações e outros instrumentos que estão associados à redação de textos de melhor qualidade. Também permite compartilhar textos, realizar revisões e dar feedback de maneira mais ágil. São possibilidades que, se usadas, contribuem para melhorar a qualidade da escrita.
Mas, o que é bom para a Finlândia é bom para o resto do mundo? Possivelmente não. Uma das razões tem a ver com o Código Alfabético do Finlandês. Trata-se de um código que tem apenas 20 grafemas e 20 fonemas, esse tipo de ortografia é chamada “rasa” ou “transparente”. Não é por acaso que lá as crianças aprendem a ler aos 7 anos de idade e no final do 1º ano escolar já apresentem um desempenho ortográfico superior a alunos de qualquer outro país europeu. O que não sabemos – ainda – é como será o ensino da digitação e o nível de proficiência que será exigido na Finlândia – mesmo porque digitar com 2 dedos ou com 10 faz tanta diferença quanto tocar piano com 2 dedos ou com as duas mãos.
Mais cedo ou mais tarde as crianças irão aprender a digitar diretamente no tablet. Faria muito bem acostumar as crianças a fazerem isso em qualquer país, inclusive no Brasil. Mas não é óbvio que faria bem abandonar o ensino da caligrafia e o uso da letra manuscrita, pelo menos até que descubramos formas alternativas de lidar com as perdas que isso fatalmente ocorrerá. Seria no mínimo imprudente e irresponsável.
Em matéria de educação, há muitas coisas boas que deveríamos aprender da Finlândia. A mais importante delas é como atrair para o magistério jovens bem formados no ensino médio. Por que não começamos por aí?