O Ministério da Educação (MEC) finalmente apresenta a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) para consideração do Conselho Nacional de Educação. Merece aplauso o esforço. Há décadas defendo publicamente a necessidade de um currículo e à falta dele desenvolvi um para a instituição que presido.
Por isso, mesmo discordando da forma desencaminhamento dada ao tema, aceitei atuar como “leitor crítico” da versão elaborada sob o comando da atual gestão (íntegra da avaliação)
Concentro-me, neste texto, nos desafios a enfrentar e nas lições que ainda podemos aprender.
O conteúdo de um currículo pode ser avaliado a partir de diferentes perspectivas. O principal é saber se o que temos responde ao que esperamos da escola. E não há clareza sobre isso: a atual proposta reflete essa indefinição. No Brasil, as discussões são fundamentalmente ideológicas o que se traduz na ambiguidade dos termos usados –
base curricular, currículo, disciplina, área de conhecimento, competências, habilidades, direitos de aprendizagem.
Isso reflete a dificuldade do País em lidar com uma das instituições mais importantes da educação e que deve refletir a determinação de uma sociedade sobre o que as escolas devem ensinar e os alunos, aprender. Comparado a
programas de ensino de outros países, o nosso está num nível razoável, com altos e baixos nas diferentes disciplinas.
A qualidade do documento é reflexo do processo – e nisso também o Brasil discrepa do modo de proceder do resto do mundo. Limitamos nossa análise, aqui, à decisão estratégica da atual gestão do MEC na condução do assunto. A primeira decisão foi heroica: resistir às pressões para aprovar, a toque de caixa, a versão herdada do governo
anterior.
A segunda decisão foi a de criar um comitê gestor integrado por funcionários do ministério. Esse comitê tanto serviu para receber e acomodar pressões quanto para reformular, em maior ou menor grau, o que fora proposto, consultando indivíduos e grupos para rever ou atuar como leitores críticos.
A possibilidade de comparar a segunda com a terceira versão e ler os pareceres dos leitores críticos permitirá avaliar alguns dos problemas presentes na segunda versão, bem como entender a decisão do MEC de não dar continuidade ao modelo das assembleias gerais e das tentativas de “privatização” da Base.
Essa reflexão será fundamental e deve ser feita pelos estudiosos de política pública, pela imprensa e pelas
próprias organizações que apoiaram as iniciativas anteriores. Como foi possível fazer uma proposta tão deficiente como a apresentada nas duas primeiras versões?
Esse exame também servirá para avaliar – inclusive e especialmente a partir da análise do vocabulário utilizado – o quanto ainda estamos presos ao passado, com o olho no retrovisor, fugindo de enfrentamentos essenciais para transpormos o umbral da mediocridade. A apresentação da versão atual reflete um compromisso com normas e
“avanços” do passado, com os quais o País precisa romper radicalmente se quiser avançar na educação. Essas amarrações nos impedem de elaborar um currículo de padrão comparável aos dos países mais avançados.
A falta do processo devido foi a grande oportunidade perdida com essa decisão pragmática do MEC. Em nenhum momento houve um verdadeiro debate, em que “autores” mostrassem a cara para defender suas propostas diante de críticos
qualificados. Audiências públicas e assembleia sgerais e pressões de gabinete não constituem mecanismos adequados para promover um diálogo dessa natureza. Isso é particularmente relevante num país com pouca tradição de educação de qualidade. É importante ouvir as experiências de Estados e municípios na elaboração de currículos,
mas é preciso saber se essas experiências refletem o estado da arte e calibrar o valor do que foi apurado. É fundamental ouvir especialistas e professores, para saber se o currículo está bem articulado e/ou adequado ao mundo escolar. Mas é fundamental que os interlocutores sejam especialistas com efetiva reputação acadêmica e profissional na área – dos quais temos pouquíssimos – ou professores com sucesso comprovado.
Definir estrutura, conteúdo e sequência de um currículo não é tema para assembleia geral de condomínio, menos ainda quando este vem sendo objeto de décadas de manipulação ideológica e injunções de outras naturezas. Discutir uma proposta de currículo não significa fazer vencer uma ou outra ideia. Tratase de seguir um ritual consagrado e necessário para legitimar um trabalho dessa natureza. Um debate conduzido de maneira adequada permitiria aos proponentes manter a consistência e corrigir eventuais desvios de suas propostas originais, mesmo quando isso implique revisões profundas. Sem isso a BNCC poderá até ser um avanço, mas não terá passado pelo teste do contraditório. Se o que ensinamos na escola tem por objetivo formar cidadãos críticos, o processo de fazer um currículo precisa passar pelo mesmo crivo. Isso não se faz com audiências públicas.
O MEC mostrará que aprendeu com essa experiência se, no encaminhamento do currículo do ensino médio, retomar do zero a discussão, partindo da análise da experiência internacional e das melhores práticas e, no processo, preencher as lacunas e promover as correções necessárias na estruturação desse nível de ensino. O uso de uma
linguagem clara e universalmente compreensível ajudaria imensamente. Ao Conselho Nacional de Educação resta a oportunidade de romper com o modelo das consultas públicas e de seus tipicamente burocráticos, verborrágicos, gongóricos e consequentemente inócuos pareceres, convidando reconhecidos especialistas em currículos para comparar as propostas apresentadas pelo MEC com os currículos dos países mais avançados em educação e para analisá-las com base nos critérios universalmente utilizados para avaliar currículos, a saber, foco, rigor e coerência.
A educação precisa e o País merece!
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