Diante de tantos problemas econômicos e sociais, podemos afirmar que a leitura realizada desde o início da vida é capaz de romper o círculo vicioso da pobreza? As evidências dizem que sim. Os livros, quando lidos pelos pais a seus filhos nos primeiros anos de vida, são capazes de desenvolver o vocabulário e a cognição das crianças e até mesmo impulsionar o QI delas. E mais: a leitura é capaz, ainda, de diminuir as punições físicas dentro de casa. Todo este impacto representa ganhos capazes de transformar o futuro de crianças em situação de vulnerabilidade.
Diversas dessas evidências já são conhecidas, mas agora, pela primeira vez, um grupo de pesquisadores avaliou de forma ostensiva e rigorosa uma intervenção de estímulo à leitura realizada no Brasil. Os resultados da avaliação foram publicados recentemente por uma das mais importantes revistas sobre desenvolvimento infantil do mundo, a Pediatrics. O estudo foi conduzido por pesquisadores do Instituto Alfa e Beto em parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade de Nova York (NYU).
Denise Rocha, psicóloga e pesquisadora do Instituto Alfa e Beto, foi uma das coordenadoras desta intervenção, realizada na cidade de Boa Vista (RR). Na entrevista a seguir, ela fala sobre os resultados da pesquisa, a metodologia empregada e as implicações deste estudo pioneiro. Confira:
O estudo sugere que a leitura entre pais e filhos é importante – mas não se trata de “qualquer” leitura. A maneira como ela é conduzida pelo adulto parece ser fundamental. Que tipo de leitura foi estimulada no âmbito desta intervenção para que fossem alcançados os resultados apresentados?
R: Ensinamos e encorajamos o desenvolvimento de estratégias de leitura – não de contação de histórias ou de dramatização. E tratamos de uma forma muito especial de leitura: a interativa, dialogada ou dialógica. Nessa estratégia de leitura, há dois mediadores entre o adulto e a criança – o livro e a linguagem utilizada. O adulto deve ressaltar e reforçar a linguagem do livro, inclusive a linguagem visual, e estimular a criança a desenvolver a sua linguagem. Daí a expressão “leitura interativa”.
Por que este tipo de leitura é importante?
R: O objetivo principal é desenvolver o gosto e o hábito pela leitura. O gosto se desenvolve quando o contexto é agradável e acolhedor, e os livros e a leitura são estimulantes. O hábito se desenvolve criando diversas oportunidades dentro e fora da escola para a criança ler e aprender a identificar, escolher e cuidar dos livros. O segundo objetivo da leitura é ensinar a criança a realizar – pelo diálogo em torno da leitura – a transposição da leitura do mundo para a leitura dos livros. Isso inclui não apenas a aprendizagem de informações e de fatos, mas de sonhos, medos e sentimentos. As evidências são unânimes em indicar a leitura interativa, por meio do diálogo, como o instrumento mais poderoso para se alcançar os objetivos de formação de um leitor crítico. A leitura deve ser uma conversa em torno do livro, sempre que possível liderada pelas crianças e estimulada pelos adultos. A leitura de livros é uma oportunidade para conversar, para ver e ler o que está escrito, para imaginar e trocar ideias.
Trata-se de alguma metodologia específica de leitura, desenvolvida pelos pesquisadores?
R: A metodologia aplicada nesse estudo mesclou o Programa Leitura desde o Berço, desenvolvido e implementado pelo IAB desde 2010 em alguns municípios do país, às práticas desenvolvidas pelos pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Nova York (NYU) no âmbito do projeto intitulado BELLE – The Bellevue Project for Early Language, Literacy, and Education Success. O foco do BELLE é quebrar o ciclo intergeracional da pobreza e, para tanto, o programa aborda as disparidades de desenvolvimento, de preparação para a escola e de desempenho escolar que existe entre as crianças de famílias de baixa renda e as de famílias de renda média/alta. O BELLE possui um laboratório de pesquisa multidisciplinar, sob a liderança do pesquisador Alan Mendelsohn, cujo objetivo principal é o de adaptar, desenvolver e avaliar estratégias de cuidados pediátricos primários para trabalhar com famílias de baixa renda com crianças pequenas (do nascimento aos cinco anos). Estas estratégias de cuidados pediátricos primários são projetadas para promover interações entre pais e filhos, que servirão para melhorar a preparação para a escola e o sucesso escolar de longo prazo, diminuindo, assim, as disparidades relacionadas com a pobreza.
Intervenções como a relatada pelo estudo acontecem em um contexto em que os pais têm pouca ou nenhuma familiaridade com livros ou o hábito da leitura. Como superar este desafio? E como ele foi superado especificamente no caso da pesquisa?
R: Esse era um desafio previsto e intrínseco à pesquisa. O programa foi pensado e desenvolvido especialmente para esse público com pouca ou nenhuma familiaridade com livros de modo a promover interações de linguagem responsiva de alta qualidade. A linguagem das sessões de treinamento de pais, os exemplos levados e a postura de quem conduzia as reuniões são alguns dos fatores centrais que garantiram a adesão do público. Além disso, o estímulo à leitura durante a rotina da creche fez com que as crianças incentivassem e cobrassem momentos de leitura conjunta também em casa. Particularmente em relação ao currículo dos encontros mensais com os pais, fomos afinando a metodologia ao longo do ano, buscando estratégias que comunicassem melhor com aquele público. Um exemplo de estratégia pensada a partir do que o grupo trouxe foram as “situações-problema”. Percebemos que havia pontos de resistência, e alguns pais assumiram uma postura “fechada”, afirmando que o filho era “diferente”, “não permitia”, “fazia isso” ou “não fazia aquilo” e que “em casa era tudo muito mais complicado”. Diante disso, selecionamos relatos do próprio grupo, fizemos fichas e na sessão seguinte distribuímos para o grupo buscar soluções em duplas. Isso funcionou muito bem e, adicionalmente, estreitou os laços entre o grupo. Os pais tenderam a legitimar o discurso de outros pais, e mesmo os mais resistentes conseguiram pensar em soluções e aceitar as sugestões dos seus pares para suas dificuldades.
No caso de Boa Vista, a intervenção teve como pano de fundo uma política mais ampla de apoio à Primeira Infância. É possível dizer que esse histórico pode ter contribuído para que a intervenção obtivesse resultados tão expressivos?
R: Certamente sim. O apoio irrestrito de todos os profissionais da Prefeitura de Boa Vista e do Programa Família que Acolhe, desde a prefeita Teresa Surita até as educadoras das Casas-mãe, possibilitou que a intervenção ocorresse o mais próximo possível do ideal.
Um resultado surpreendente foi a redução nas punições físicas dentro de casa. O estudo não permite identificar a razão desta redução. Outras evidências nos ajudam a entender por que os pais tendem a bater menos em seus filhos com a ajuda da leitura? Quais as hipóteses acerca deste assunto?
R: A redução das punições físicas em casa na dimensão observada na pesquisa deve ser alvo de investigações futuras. É um resultado maravilhoso, e do ponto de vista de políticas públicas, traz mudanças sociais profundas. É possível que os pais que participaram do programa adquiriram novas formas de conversar com as crianças, e, assim, não precisaram mais recorrer a castigos físicos para se fazer entender. Eles aprenderam a dialogar com os filhos. Outra hipótese é a de que os pais, ao se engajarem em situações prazerosas de leitura, vivenciaram momentos de atenção individualizada e reduziram a ocorrência de comportamentos “inadequados” dos filhos que muitas vezes podem perturbar o ambiente doméstico para obter atenção, mesmo que de forma indevida.
Você já participou dentro do Instituto Alfa e Beto de outras iniciativas voltadas para a leitura desde o berço? Em que medida elas se diferenciam e se assemelham a esta intervenção em Boa Vista?
R: A semelhança se encontra no cuidado com o acervo da biblioteca, no treinamento dos profissionais que irão conduzir o programa e no apoio do Instituto às ações de implementação. Em Boa Vista, devemos ressaltar dois fatores importantes: o altíssimo envolvimento de toda a equipe do Família que Acolhe e a prontidão com que aderiam e implementavam nossas sugestões; e o apoio, experiência internacional e orientação dos profissionais da NYU, Dr. Alan Mendelsohn e Dra. Adriana Weisleder. Ambos têm larga experiência em conduzir programas dessa natureza nos EUA, além de serem profundos conhecedores das evidências acerca desse tema.
O que mais te surpreendeu nesta intervenção?
R: Os resultados são impressionantes e fascinam qualquer estudioso da área. O programa de leitura provocou aumentos grandes e consistentes tanto nas interações entre pais e filhos quanto no desenvolvimento das crianças. Embora tenha envolvido um complexo e intenso trabalho, o programa consistiu apenas em empréstimo de livros e sessões de treinamento de pais. Isso explicita uma enorme oportunidade de escalabilidade e uma oportunidade significativa de adaptação para outros lugares, no Brasil e fora.
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