Este post faz parte de uma série produzida pelo Instituto Alfa e Beto que irá desvendar em 20 capítulos a inteligência. Todas as segundas-feiras são publicados novos artigos neste espaço. Acompanhe! Clique aqui e veja todos os posts já publicados. Para ver o índice completo da série, clique aqui.
A medição do QI é um dos maiores feitos da psicologia, tendo em vista seu enorme valor preditivo e sua enorme importância prática. Mas por essa mesma razão – e também por incompreensões e falta de clareza no diálogo – este é um dos temas mais controvertidos da psicologia.
Desde a proposta inicial de Charles Spearman em 1903 de medir a inteligência até os dias atuais, o tema evoca polêmicas acirradas, tanto do ponto de vista conceitual quanto do ponto de vista prático, tendo em vista os usos e abusos que o conceito e os testes de QI promoveram ou podem promover.
As discussões vão desde o próprio conceito, da possibilidade de sua medição e da adequação dos instrumentos, até às tecnicalidades relacionadas com a aferição do conceito. Entre os psicólogos e especialistas em psicometria o tema ainda é objeto de debates e refinamentos, mas não é contestado em si. As medidas de QI usadas por diferentes testes são muito consistentes entre si e os testes mais conhecidos, nos vários países, encontram-se entre os instrumentos de medida mais confiáveis que os psicólogos utilizam em seus trabalhos acadêmicos ou profissionais.
As maiores controvérsias se dão tanto no campo conceitual e sobretudo a partir dos usos e abusos do conceito e dos instrumentos de medição.
Há quem discorde da existência do QI como conceito ou como realidade psicológica. Esse grupo é cada vez menor, tendo em vista a abundância e o rigor crescente das evidências, inclusive as mais recentes oriundas dos estudos do Projeto Genoma e da neurociência.
Há muitas críticas aos instrumentos – se são enviesados culturalmente ou não. Esse assunto também já foi superado em grande parte, na medida em que existem testes não verbais que não envolvem conhecimentos linguísticos. Em qualquer população em que for aplicado, um teste de QI (ou uma pergunta sobre nível de escolaridade, salários ou emprego) poderá revelar diferenças associadas a classes sociais, grupos étnicos ou raciais. Isso não é um defeito do teste (é uma qualidade), mas a constatação dos resultados pode gerar preconceitos e estigmas.
Há quem discorde do instrumento ou dos resultados e concentre sua ira no mensageiro. Foi exatamente isso que ocorreu com a publicação do livro A Curva Normal e com tantos outros pesquisadores que se debruçam e debruçaram sobre esse tema tão sensível.
Muitos discordam dos usos dos testes e de seus resultados, e isso vale para testes em geral, mas é mais acirrado no caso de testes de QI, que não dependem de “esforço” ou “mérito” individual.
Em seus primórdios, testes de QI foram usados para selecionar indivíduos para escolas, na falta de vagas. O critério poderia ter sido outro – como ordem de chegada, idade ou conhecimentos prévios. Durante a Segunda Guerra Mundial, e após a mesma, testes de QI foram usados para prever e selecionar quem seriam os melhores indivíduos para realizar certas tarefas. Isso é considerado como positivo para quem escolhe e foi escolhido, mas também pode ser considerado como uma discriminação por quem não foi escolhido para entrar numa escola ou um emprego. Nos Estados Unidos, as melhores universidades usam testes como o SAT (Scholastic Achievement Test) para avaliar o potencial dos alunos em realizarem cursos superiores com sucesso. Esses testes medem fatores que também são medidos em testes de inteligência.
Há duas fortes razões subjacentes às críticas ao uso de testes de QI e de seus resultados para vários fins. Uma delas é que, ao avaliar o QI e usar seus resultados, estaríamos limitando nossas expectativas sobre o potencial das pessoas, e, como todos sabemos, o potencial de uma pessoa nunca é plenamente conhecido: pessoas podem se auto superar e operar prodígios. Ou seja, o QI seria transformado numa profecia que se auto cumpre – e, frequentemente, seria usado “contra os mais fracos”. Ou o conhecimento da informação levaria a formar “guetos” que tenderiam a perpetuar e aumentar as diferenças e a formar preconceitos. Cabe observar que não aplicamos o mesmo critério quando se trata de habilidades específicas – como talentos musicais ou habilidade para jogar xadrez. Mas quando se trata de inteligência, o clima se torna tenso e ideologicamente impregnado.
A outra razão é de natureza mais geral e filosófica: aceitar a ideia de que as pessoas possuem QI diferentes implica aceitar a ideia de que as pessoas são diferentes. E – apesar disso ser óbvio – a aceitação de que somos diferentes nunca foi uma unanimidade, e tem sido cada vez menor a unanimidade sobre isso. Somos diferentes em relação ao nosso sexo (homens e mulheres), homens e mulheres são diferentes em relação ao seu tamanho (isso é pouco contestado), à sua força (algo contestado) e às suas habilidades (muito contestado) – embora existam evidências a respeito das origens biológicas e empíricas dessas diferenças.
Nessa mesma linha de contestação, nas últimas décadas vêm surgindo movimentos que atribuem um valor negativo a qualquer tipo de diagnóstico psicológico que, segundo os críticos o diagnóstico “medicaliza” e cria “estigmas”. Os custos para o indivíduo e para a sociedade, argumentam, seriam mais danosos do que os benefícios. Por exemplo, há um forte grupo que contesta a propriedade de se fazer diagnóstico de dislexia, uma deficiência neurológica de processamento que dificulta a aprendizagem da leitura.
Da mesma forma que é preciso ouvir, considerar e, sobretudo, respeitar o direito a opiniões diversas – mesmo quando fundamentadas em crenças ou ideologias – também é preciso respeitar posições fundamentadas em outros pontos de vista e valorizar, de forma distinta, aquelas que provêm de conhecimentos científicos sólidos. Mas isso é parte de um “contrato social” que está cada vez mais difícil de se estabelecer num mundo cada vez mais dividido por ideologias e fanatismos de todos os tipos.
Enfim, esses são problemas que se tornarão cada vez mais sensíveis na medida em que vivemos numa sociedade multicultural. Mas cremos ter dado ao leitor uma ideia suficiente dos riscos que corre qualquer pessoa que queira abordar esse tema.
Na próxima semana…
Já vimos que o conceito de “outras” inteligências é equivocado. A inteligência é uma só – mas isso significa que ela é fixa? Ou ela pode mudar? |