O português José Morais é um dos maiores especialistas do mundo em alfabetização. Doutor em Desenvolvimento da Cognição e Psicolinguística e professor emérito da Universidade Livre de Bruxelas, Morais colaborou com o desenho de políticas públicas de alfabetização em Portugal e na França.
No Brasil, participou em 2003 da elaboração do Relatório Alfabetização Infantil – Novos Parâmetros, documento pioneiro que apresentou às autoridades brasileiras os mais recentes e sólidos achados da Ciência Cognitiva da Leitura. A convite do Instituto Alfa e Beto, já visitou o País diversas vezes para Seminários Internacionais e encontros com autoridades.
Em passagem recente por Natal (RN), onde acompanhou a 3a Jornada Internacional da Alfabetização, realizada entre os dias 7 e 8 de agosto, Morais falou à equipe de Comunicação do Instituto Alfa e Beto sobre questões que permeiam o debate sobre o tema. Confira os principais trechos desta conversa:
Alfabetização versus letramento
“Primeiro, temos que definir os conceitos para podermos entendê-los. Alfabetizar é levar uma criança ou adulto a ser capaz de ler e escrever com autonomia tudo aquilo que está escrito, quer tenha sentido ou não, quer conheçamos a palavra ou não. Estar alfabetizado é ser capaz de ler e escrever tudo o que é coerente com a língua, é ser capaz de decodificar na leitura e de recodificar na escrita. E tudo isso de maneira autônoma, porque se eu preciso de um tutor toda vez em que for ler algo, então não estou alfabetizado. Mas apenas isso não é suficiente para ser considerado letrado. Letrado é alguém que vai para além da decodificação autônoma e passa para um processo de identificação automática da palavra. Eu sou letrado quando leio uma palavra e imediatamente o seu significado salta a minha cabeça. Porém, ainda sobre letramento, na verdade não gosto nada deste termo. Ele foi inventado no Brasil. No meu país, por exemplo, não existe. Lá, utilizamos o termo literacia. No Brasil, o termo letramento nasceu na década de 1980, com Magda Soares – se não estou enganado – para designar a leitura como prática social. Bom, é claro que a leitura é uma prática social. Mas quando queremos explicar os fenômenos da leitura, temos que considerar aspectos cognitivos. Por isso, letramento é um termo que não faz sentido na ciência da leitura – ele não existe na ciência da leitura. É um termo que, intencionalmente, imprime um viés ideológico para a questão da alfabetização, que deveria ser tratada por uma perspectiva científica”.
Em pleno século XXI, a alfabetização ainda é debatida
“O grande problema está na formação de professores, mas acredito que há outro ainda maior: o que pensam, o que conhecem e como encaram a questão da alfabetização as pessoas que são formadoras dos formadores. Quando eu fiz parte do Observatório Nacional da Educação, na França, fizemos um programa para a formação que reunia tudo aquilo que precisava ser ensinado aos futuros professores. O projeto nunca saiu da gaveta do ministro. Não que ele estivesse em desacordo. Pelo contrário, ele demonstrou uma boa aceitação, mas não pôde fazer nada porque havia pressão política por parte dos professores dos Institutos Universitários de Formação de Mestres. Penso que isso também acontece muito no Brasil. Essa questão do corporativismo faz com que, apesar dos avanços científicos, ainda prevaleçam ideias equivocadas sobre alfabetização. Estou convencido de que há uma distância muito grande entre o mundo científico e o mundo da educação. E nós, cientistas, somos também responsáveis por criar esta distância, porque esquecemos que a alfabetização é também uma questão sociopolítica – e não só cognitiva”.
Alfabetização em três estágios
“A partir dos resultados do Pisa [avaliação internacional aplicada pela OCDE a jovens de 15 anos de diversos países], criei uma categorização da alfabetização a partir da utilização que se faz dela. Em um primeiro nível, a alfabetização é utilizada apenas para adquirir e transmitir conhecimento. Isto para mim é um nível básico, onde o ler e o escrever são utilizados de forma produtiva, mas sem alterar o conhecimento. Em seguida, há dois outros níveis: o nível crítico, onde a alfabetização nos permite criticar a informação que nos é oferecida – criticar racionalmente, seguindo as regras do pensamento racional. E, por fim, há o nível criativo, que é quando somos capazes de argumentar para defender uma ideia ou crítica”.
Idade certa para alfabetizar
“Aos cinco, seis anos, a criança está pronta para a alfabetização – no nível básico. E para um código alfabético como o português, a criança deve estar alfabetizada ao fim do primeiro ano do Ensino Fundamental, ou seja, após um ano ela deve se tornar uma decodificadora autônoma. Isso, claro, se o ensino for bom e se utilizar o método fônico. Mas, antes disso, é preciso que haja a preparação para a alfabetização. Estratégias como os jogos fonológicos são importantes para que a criança entenda que a escrita representa a fala, e que a representa de uma certa maneira. Tudo isso pode ser feito antes dos cinco ou seis anos – muito antes. Existe uma coisa chamada leitura partilhada, que é o estabelecimento de uma relação entre pais e filhos em torno da palavra escrita desde muito cedo para que a criança se dê conta de uma série de características da palavra escrita. Isso é importante para prepará-la pouco a pouco e mostrar que existe um outro mundo para além da comunicação oral, que é a comunicação pela imagem, pela escrita, pelos gestos, pela ternura, pelo afeto. Tudo isso faz parte da educação de uma criança”.
Um novo currículo Português e o crescimento no Pisa
“Há alguns anos houve em Portugal um esforço para a construção de um novo currículo. Eu e outros especialistas estivemos envolvidos na parte de alfabetização e aprendizagem da leitura e escrita. Houve reações, mas nos esforçamos para explicar nossas ideias e propostas – conversamos com professores, gravamos vídeos etc. E acho que houve um avanço nesta área. Mas é difícil saber se os professores realmente implementaram na sala de aula o que estava previsto. Isso eu não tenho como saber. Também não tenho como saber se esse trabalho contribuiu para o crescimento recente de Portugal no Pisa. Pode ter havido algum impacto, mas é difícil saber. Certamente foi devido a muitos fatores. Eu diria que houve uma coisa realmente importante: a partir de certa altura do fim dos anos 1990 e início dos anos 2000, vários governos que se alternaram no poder se mostraram preocupados com a educação e as ciências. Independente da questão ideológica e partidária, compreenderam que era uma questão essencial para o país”.