A reforma do ensino médio proposta pelo governo por meio da Medida Provisória (MP) 746 trata, entre outros pontos, do ensino técnico. O texto prevê que essa etapa educacional oferte também cursos de qualificação, estágio e ensino técnico profissional. A forma como isso deve ocorrer ainda não está definida, uma vez que a proposta passa por análise no Congresso Nacional. Especialistas acreditam que essa pode ser uma mudança positiva, mas precisa ser bem pensada para não resultar em erros já cometidos no passado. Também alertam para a necessidade de uma discussão mais aprofundada acerca do tema.
O professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FE/UnB) Remi Castioni, especialista em educação profissional, acredita que a divisão do ensino médio proposta na MP não tenha ficado clara.
A preocupação é como as disciplinas do currículo comum vão interagir com as aulas do ensino técnico. “O ensino médio, hoje, tem 2,4 mil horas, sendo 13 componentes curriculares em 200 dias letivos.
A lei reduz para 1,2 mil a carga horária obrigatória, que inclui disciplinas de português, inglês e matemática. As demais horas devem ser divididas entre as outras matérias e o ensino técnico. É preciso saber como essa divisão será feita”, afirma.
Ele vê com preocupação o fato de que o estudante que concluir o ensino médio voltado para a educação profissional não deverá receber um certificado de curso técnico. “O estudante que concluir o ensino médio integrado ao ensino técnico não poderá obter certificado de técnico da área que cursou, pois a nomenclatura que o governo deu não é a mesma definida pela legislação”, destaca. A norma entregue ao Congresso prevê a concessão de certificados intermediários de qualificação para o trabalho.
Por outro lado, as mudanças propostas abrem mais espaço para uma flexibilização das disciplinas do ensino médio. “Nós já temos a previsão da educação profissional desde a Constituição Federal de 1988, mas a medida provisória permite que 1,2 mil horas sejam utilizadas para aprendizagem profissional, experimentação, entre outras possibilidades, no ensino médio.”
Castioni alerta que as mudanças no currículo devem ser acompanhadas de investimentos em materiais e laboratórios. “Nós temos um padrão de escola profissional, que são escolas do Sistema S e dos institutos federais, que podem ser comparadas às dos países desenvolvidos.
Embora os institutos federais sejam muito acadêmicos, têm a estrutura adequada e um ambiente diferente e melhor que o das escolas estaduais e até das particulares”, observa. “Não basta mudar o currículo da escola para incluir o currículo técnico. É preciso que essas instituições de ensino tenham equipamentos de ponta, dos mesmos usados nas indústrias, para que o estudante aprenda realmente. Uma máquina pode ser usada para explicar conceitos matemáticos. Isso torna o ensino até mais interessante e atraente para o estudante”, ressalta.
Mudança necessária
O presidente do Instituto Alfa e Beto (IAB), João Batista Araujo e Oliveira, é otimista com relação à proposta de mudança de um modelo de ensino médio técnico que, na visão dele, está muito atrelado ao ensino médio acadêmico, em que o aluno precisa fazer os dois cursos ao mesmo tempo ou posteriormente. “A nova lei traz três vantagens. Reduz o tempo para o aluno interessado no ensino técnico. Permite tornar os cursos técnicos mais interessantes, pois eles poderão ensinar a parte de educação geral de forma contextualizada. E, assim, aumenta chance de sucesso dos alunos”, afirma.
Para ele, a proposta é diferente de outras apresentadas e praticadas no país, por reconhecer a identidade da formação profissional como uma trajetória válida dentro do sistema educacional – e não como um complemento. “É um avanço para o Brasil, que passa a praticar aquilo que sempre existiu no resto do mundo.”
O especialista em educação Claudio de Moura Castro concorda com a avaliação de João Batista.
Na visão dele, é por isso que o interesse no ensino técnico permanece baixo: a carga horária excessiva sobrecarrega o estudante. Ele acredita que a MP tenha dado uma contribuição importante no sentido de melhorar a estrutura do ensino médio no Brasil.
“Nenhum país sério tem um sistema em que todos têm de fazer uma escola única e, dentro dela, não há senão um mesmo currículo obrigatório para todos”, expõe.
“Criar uma variedade de caminhos atende a dois objetivos. O primeiro é reduzir a enxurrada curricular, com matérias demais e assuntos demais dentro de cada uma. O segundo é permitir que cada um se dedique com mais profundidade ao que melhor corresponde às suas preferências e planos futuros”, completa. Não se pode cometer o equívoco, no entanto, de ter na formação profissional a única medida para a redução do desemprego, conforme destaca Castro.
“É uma solução fácil, barata e elegante. Só que sabemos, pela experiência do passado, que não funciona. Portanto, não é o técnico brasileiro que vai ser a exceção.
Não obstante, há alguns interstícios em que pode ajudar, mas sempre de forma modesta”, afirma o especialista. “Educação e formação profissional são para aumentar a produtividade do país e a empregabilidade individual. Não afetam o nível global de desemprego”, reforça.
O crescimento dos Institutos
Entre 2008, ano em que ocorria a expansão da Rede Federal de Educação Profissional (veja Linha do tempo), e 2015, o número de matrículas na educação profissional, nas modalidades integrado, concomitante e subsequente mais que dobrou.
Passaram de quase 928 mil para 1,9 milhão, segundo dados do Censo Escolar da Educação Básica elaborados pelo Senai. “Isso é um grande avanço, o fato de você preparar as pessoas para servir a sociedade com um serviço técnico de qualidade, benfeito e com valores morais e éticos”, avalia o reitor do Instituto Federal de Brasília (IFB), Wilson Conciani.
A estudante Rayssa Queiroz, 16 anos, cursa o 3º ano do ensino médio no instituto, integrado ao curso técnico em alimentos. “Nos preparamos para atuar na área de produção de empresas, atender a necessidades de higiene, controle de qualidade e análise físico-química”, explica.
Ela conta que conheceu a instituição quando ainda estudava na rede pública de ensino, durante o ensino fundamental. “Foi muito bom, eu percebo que a nossa mente é muito mais aberta, estamos preparados para o mercado de trabalho, temos uma visão mais ampla”, relata.
Depois que concluir a formação, no fim do ano, pretende concorrer a uma vaga em universidades e, enquanto continua os estudos, quer prestar consultoria para empresas. “É um emprego muito flexível, dá para fazer faculdade ao mesmo tempo.”
Qualidade mantida Sobre a reforma do ensino médio, Wilson Conciani acredita que não deve afetar a qualidade do ensino nos institutos, a menos que a carga horária %u2014 de 1,2 mil horas para o ensino técnico e 2,4 mil horas para o médio %u2014 seja reduzida.
A preocupação maior, na avaliação de Conciani, é com a oferta dessa modalidade na rede pública de ensino como um todo. Segundo ele, o texto proposto permite a interpretação de que a profissionalização se tornaria compulsória. “Se for isso, existem muitos riscos, porque a educação profissional não é simples e barata, ela integra um conjunto de saberes muito grande”, observa.
Conciani teme, como especialista da área, que o modelo da década de 1970, que não deu certo, seja reproduzido. “Precisamos de mais tempo para discutir, para que possamos entender a proposta como um todo”, avalia. Para ele, pequenas alterações poderiam aprimorar o texto proposto.
A doutora em educação Eliane Ferreira de Sousa, analista em Ciência e Tecnologia da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), discorda da forma como a reforma foi proposta. Para ela, a MP não é o meio adequado de se propor uma mudança desse tipo.
“Começa com o instrumento errado e sem discussão com segmentos da educação e da sociedade, que são os diretamente afetados pelas mudanças”, afirma. Ela não tem esperanças de que a proposta melhore as condições do ensino no país. “A precarização do ensino sempre existiu, pois entra governo e sai governo e as medidas adotadas são apenas paliativas. É preciso pensar a educação como projeto de Estado, e não de governos. A retirada de disciplinas importantes, como educação física e artes, é outro fator agravante, pois há indefinição sobre os conteúdos, até mesmo por parte de quem criou as mudanças”, afirma. (MN)
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Linha do tempo
Veja como evoluiu o sistema de educação profissional brasileiro nos últimos anos
1909 Escola de aprendizes artífices
Elas foram criadas em 19 estados com o objetivo de educar e ensinar um ofício a meninos de 10 a 13 anos em situação de vulnerabilidade social, inclusive índios. As instituições eram subordinadas ao Ministério da Agricultura, Indútria e Comércio
1937 Liceus profissionais
Algumas instituições são transformadas em liceus. Com a reestruturação do Ministério da Educação e Saúde, é criada a Divisão do Ensino Industrial e o Departamento Nacional de Educação. O ensino técnico passa a ser elemento estratégico para o desenvolvimento da economia do Brasil
1942 Escolas industriais e técnicas
As instituições passam a ser subordinadas ao Ministério da Educação e Saúde. Com a criação de leis orgâncias, ocorre profunda reforma no sistema educacional brasileiro e, nesse contexto, o ensino profissional e técnico é equiparado ao nível médio.
1959 Escolas técnicas I
Instituições recebem autonomia didática, técnica, financeira e administrativa. São criados diversos cursos técnicos. Também é autorizado o início da formação técnica de nível superior, posteriormente estabelecida como Engenharias Operacionais.
1978 Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets)
Os centros tinham como objetivo realizar pesquisas na área técnica industrial e oferta de cursos industriais, de graduação e de pós-graduação. Formavam profissionais de engenharia industrial, tecnólogos e com licenciatura plena. Havia ainda cursos de extensão, de aperfeiçoamento e de especialização e foram criados cursos para formação de professores.
2008 Insitutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia
Foi iniciado o processo de expansão, interiorização e consolidação da Rede Federal de Educação Profissional, com o objetivo de democratizaçaõ e ampliação do acesso a conquistas científicas e tecnológicas e formação de profissionais qualificados. A partir dessa data, 31 Cefets, 75 unidades descentralizadas de ensino, 39 escolas agrotécnicas, 7 escolas técnicas federais e 8 escolas vinculadas às universidades federais passam a ter o status de institutos federais.
Fonte: Conif