Nota do Instituto Alfa e Beto:
Este artigo foi publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo
O ministro da Educação, José Mendonça Bezerra Filho, parece disposto a realizar mudanças de peso. Um alento para a área. De recente fala sua emergem ao menos três mensagens fortes. O ministro fala em prioridades e rupturas e diz que se contentará se conseguir realizar uma só: reformar o ensino médio. Optar por uma meta revela percepção do peso das reações e da tarefa hercúlea que será desmontar a hegemonia ideológica e os interesses corporativos e burocráticos que cercam o tema. O mais importante é constatar que o Ministério da Educação (MEC) voltou a falar em prioridades, o que não ocorria desde a gestão Paulo Renato Souza.
Continuidade com correção de rumos também está na pauta. O exemplo dado foi o da Base Curricular, o programa de ensino ou currículo nacional, pilar básico de qualquer política educacional. O governo passado acertou ao decidir enfrentar a questão, mas errou no encaminhamento e, por consequência, no conteúdo. O currículo tem liturgia, exige debate público e o contraditório. No Brasil hegemônico houve, no máximo, um equivocado processo de consulta à turma da arquibancada e restrito a interlocutores anônimos.
Um passo já foi anunciado, o ensino médio não entra no processo. O que mais? Fala-se em grupos pressionando para que a “base” saia logo, usando como argumento os prazos do Plano Nacional de Educação (PNE). Que grupos são esses e quais os interesses envolvidos? É preciso ouvir pessoas com comprovado conhecimento e experiência no ensino das disciplinas. O processo é tão importante quanto o conteúdo, e o convite e o registro de discordâncias fundamentadas são essenciais para assegurar a pluralidade. Mesmo que não acolhidas, elas servirão de parâmetro para correção de rumos. Afinal, a função última de um currículo é exatamente promover o espírito crítico.
O terceiro tópico levantado por Mendonça Filho escancara a porta de entrada na câmara de horrores que são os programas do MEC. O bode expiatório foi o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), mas poderia ter sido qualquer um dos mais de 40 programas inventados desde 2007. Praticamente todos os programas iniciados nos últimos 14 anos apresentam o mesmo perfil: inventa-se um programa, forja-se um pacto nacional articulado por uma equipe de organizadores profissionais, alinham-se os instrumentos que incluem pressão de um lado, apelo ao bom-mocismo e cooptação via bolsas, estabelece-se um vínculo com as universidades e gasta-se dinheiro a rodo. Não há controle ou avaliação; consequentemente, não há resultados. Só aí terão sido gastas algumas dezenas de bilhões de reais; só o Pnaic torrou R$ 2 bilhões. Isso sem contar os 100% de perda do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) e a inadimplência do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), que parece ser superior a 40%.
Voltemos ao Pnaic: como é possível melhorar a educação sem ensinar as crianças a ler e escrever? Examinemos as entranhas do cadáver. O programa já nasceu com outros defeitos de fábrica, além dos apontados. O nome é errado: a idade certa para alfabetizar é no primeiro ano. Há evidências abundantes sobre isso e sobre os prejuízos de não fazê-lo na hora certa. A opção pelos oito anos é de natureza ideológica e o MEC preferiu prejudicar os alunos. Mas o MEC continuará errando gravemente nessa área se insistir em usar a tal Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), cuja impropriedade técnica já foi atestada por especialistas mundiais.
Na cerimônia de lançamento do Pnaic, o governo citou o Ceará e Sobral como suas fontes de inspiração. Ora, o programa do Ceará, de êxito comprovado, propunha alfabetizar as crianças nos dois primeiros anos – um pouco melhor. E em Sobral, há mais de uma década, as crianças continuam sendo alfabetizadas no primeiro ano, usando o método fônico, comprovadamente mais eficaz para alfabetizar. O Pnaic não trata disso. Ao contrário, muitos de seus documentos ridicularizam a questão e denigrem os que a promovem. O MEC desprezou a experiência, a Federação e a evidência científica. E ainda fez uma apropriação indébita. Esse é o padrão recorrente nos demais programas: se não tem pão, dá-lhe bolsas!
Esse padrão de busca de consenso a qualquer custo é parte do processo de consolidação do perverso pensamento hegemônico que aparelhou o MEC e as Secretarias de Educação. Mas também cabe a instituições como o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) explicar por que nunca se opuseram a nenhuma das investidas do MEC. Por que todo mundo aderiu, impedindo a diversidade?
Deu no que deu, R$ 2 bilhões jogados no ralo, nenhum progresso, nenhum resultado. Este é um momento único para as universidades que participaram desse e dos outros programas apresentarem os resultados. Chega de endeusar e dar cadeira cativa aos que fazem sua carreira com a bandeira do “mais dinheiro” ou com o argumento de que tudo é para dar oportunidade aos que nunca tiveram. Mais dinheiro para a educação só será justificado quando aprendermos a gastar bem o que já existe e promovermos efetivamente a equidade. Ao colocar o dedo na ferida, o ministro parece estar convocando a sociedade a abrir os olhos.
Função de governo é estabelecer políticas, regular de forma adequada, para promover a iniciativa e a inovação, assegurar eficiência no uso dos recursos e promover a qualidade e a equidade. Não é criar privilégios, barreiras de entrada ou distribuir bolsas, como se o MEC fosse armazém de secos e molhados.
O governo interino parece decidido a fazer reformas profundas. O tempo do “mais recursos”, dos desperdícios e do corporativismo deslavado em nome dos pobres acabou. Oxalá o ministro Mendonça Filho consiga manter o foco, mobilize apoio para fechar essa câmara de horrores que foi a farra dos programas do MEC e inicie uma nova era para a combalida educação brasileira.