Nota do Instituto Alfa e Beto:
Este artigo foi publicado originalmente no jornal Correio da Bahia
Em agosto de 2014, reuniram-se na Universidade Federal de Minas Gerais, no II Fórum Dislexia, renomados cientistas que estudam os diferentes aspectos da alfabetização em todo o mundo. Na ocasião, coube a mim dar um panorama dos últimos 30 anos da alfabetização no Brasil, listando inclusive a bibliografia usada nos documentos do MEC e dos cursos de formação de professores das universidades públicas. Desconcertante foi ver que nenhum deles conhecia os autores citados! O silêncio pôs em destaque o dado constrangedor – o que, no País, se considera como conhecimento científico atualizado sobre alfabetização não é compartilhado por especialistas de renome internacional. Isso é um fato empírico.
O episódio nos obriga a reflexão sobre o que é ciência. Existe uma ciência da alfabetização? Se existe, existe uma só ciência ou várias ciências? Se são várias, qual a orientação dominante, ou seja, o paradigma aceito pelos profissionais que publicam nas revistas científicas de maior prestígio?
Ciência é a busca pela verdade. A verdade científica é sempre provisória, pode ser superada ou aprimorada pelas evidências. Para avançar o conhecimento, os cientistas levantam hipóteses e fazem testes usando instrumentos aceitáveis pela comunidade científica, que é cada vez mais rigorosa. Algumas hipóteses se baseiam em questões práticas, outras, em teorias. Isso não importa. Importa se as hipóteses são sustentadas pela realidade. Se não o são, devem ser refutadas – e o mesmo acontece com as teorias. É um eterno vai-e-vem na busca de conhecimentos cada vez mais refinados e precisos.
Nos últimos 40 anos, houve uma revolução nos conhecimentos a respeito da alfabetização. Nos últimos 20, essa revolução vem sendo consolidada com os conhecimentos da neurociência, que nos permite detectar no cérebro algumas das marcas deixadas pelos processos de alfabetização. Alfabetizar por métodos errados faz mal ao cérebro.
O paradigma dominante nessa área se chama ciência cognitiva da leitura, e reúne cientistas de diversos campos do saber. Os cientistas que operam com esse paradigma possuem noção clara do que seja alfabetizar, de como se deve alfabetizar, da idade adequada para se promover processos formais de alfabetização, das relações entre alfabetização e leitura, alfabetização e escrita, alfabetização e compreensão de textos. Dentro da provisoriedade que caracteriza o conhecimento científico, sabemos também quais são as formas e métodos mais eficazes para se alfabetizar. E sabemos como validar ou refutar hipóteses associadas e esses métodos. Por exemplo, a hipótese de que as crianças estabelecem naturalmente hipóteses sobre as correspondências grafemas e fonemas já foi rejeitada há vários anos, inclusive por estudos realizados no Brasil. A ideia de que a criança deve se alfabetizar partindo de textos, frases e palavras – e não da correspondência entre grafemas e fonemas – também já foi devidamente superada.
O impacto de uma boa alfabetização formal, na idade certa – por volta dos seis anos de idade – é crucial para o bom desenvolvimento escolar das crianças. Já passou o tempo de brincar com teorias ou fazer as crianças de cobaias de crenças já superadas pelo conhecimento científico. O Brasil continua tergiversando sobre a questão da alfabetização. A Academia Brasileira de Ciências já se pronunciou a respeito, em documento publicado em 2010, e que continua a ser ignorado pelas autoridades e pela comunidade acadêmica. Está na hora de a comunidade científica brasileira, que se dedica ao ramo, reafirmar seus compromissos com a ciência. As crianças merecem respeito. A ciência também.