Um dos aspectos mais interessantes da neurociência é que ela permite observar o desenvolvimento do cérebro humano e saber quais fatores externos afetam seu pleno funcionamento. Ao longo dos anos, neurocientistas vêm observando como situações de estresse, consumo de drogas e até alimentos da nossa dieta podem causar alterações neuronais e prejudicar nosso cérebro. Na última década, porém, o consenso científico tornou-se claro quanto a outro tipo de neurotoxina: a pobreza.
As pesquisas mais sérias sobre o tema concluem que pobreza perpetua pobreza, geração após geração, agindo sobre o cérebro. Um grande estudo sobre o tema foi publicado na revista americana Nature Neuroscience em março e é assinado por um grupo de cientistas que trabalham em nove hospitais e universidades. O grupo coletou amostras de DNA e fez ressonância magnética em mais de mil crianças e jovens, entre 3 e 20 anos de idade. Também coletou informações de suas famílias sobre renda e escolaridade e aplicou um teste para medir habilidades de leitura e memória.
As amostras de DNA coletadas permitiram que os cientistas mensurassem a influência da herança genética, olhando mais de perto para entender como a condição socioeconômica afeta um cérebro em crescimento. Os exames focaram na área superior do cérebro, nas dobras do córtex e no tamanho do hipocampo – estrutura responsável por armazenar as memórias.
O que os resultados mostram é que crianças de famílias com maior nível de ensino apresentavam maior volume na superfície cerebral e no hipocampo. Ao mesmo tempo, crianças que viviam em situação de pobreza apresentaram uma redução de 6% na superfície cerebral. O interessante é que entre as famílias mais pobres, mesmo o menor incremento na renda já representava ganhos significativos para a cognição. Já entre as famílias de classe média e alta, o aumento na renda não tinha efeito tão marcante. Em outras palavras, a riqueza não pode implica necessariamente um cérebro mais desenvolvido, mas a privação de renda pode resultar em um cérebro enfraquecido.
Pat Levitt, um neurocientista de desenvolvimento do Hospital Infantil de Los Angeles e membro do Conselho Científico Nacional dos Estados Unidos, também publicou um relatório apontando que o estresse causado por fatores como habitação precária, exposição à violência e problemas familiares faz com que o corpo libere mais cortisol, hormônio produzido no córtex adrenal. Breves rajadas de cortisol podem ajudar uma pessoa a lidar com situações difíceis, mas a longo prazo o efeito pode ser desastroso – é o chamado estresse tóxico. Levitt explicou, em entrevista à revista New Yorker, que esse hormônio pode penetrar no feto ainda na gestação e, mesmo depois de seu nascimento, continuar produzindo efeitos negativos em seu cérebro.
O Conselho Científico Nacional tem trabalhado diretamente com os responsáveis políticos para apoiar medidas para quebrar este ciclo, incluindo a oferta de melhor pré-natal e atendimento pediátrico, além de pré-escolas mais acessíveis. No Brasil, entidades não governamentais também têm trabalhado para produzir informação de qualidade relacionada à Primeira Infância. Uma das iniciativas apoiadas pelo Instituto Alfa e Beto é o Radar da Primeira Infância, um site atualizado diariamente com pesquisas científicas, relatórios e informações para pais, cuidadores e especialistas no atendimento de gestantes e crianças de 0 a 6 anos de idade.
Outro projeto do Instituto que visa reduzir as lacunas causadas por diferenças socioeconômicas é o guia chamado O Diário de Maria, um manual voltado para jovens mães, onde elas podem acompanhar as etapas da gravidez e receber dicas de como incentivar o desenvolvimento de seus filhos. O Diário de Maria faz parte das ações no âmbito da Universidade do Bebê, que promove, junto aos parceiros, atividades de formação voltadas para o desenvolvimento de habilidades parentais, para gestantes, pais e familiares responsáveis pelos cuidados com a criança. Um dos programas básicos da Universidade do Bebê se volta para a formação dos vínculos de apego entre cuidadores e crianças.
Portanto, se a ciência mostra com certo determinismo desanimador que a pobreza afeta negativamente o cérebro das crianças, também é verdade que outras dezenas de estudos mostram que educação e atendimento especializado podem ajudar a superar os problemas atribuídos às diferenças socioeconômicas. Ler para as crianças e acompanhar seu desempenho na escola são duas das principais atitudes para produzir efeitos benéficos para o desenvolvimento cognitivo – e seus resultados independem de classe social ou renda.