Em entrevista, Nuno Crato, ex-ministro da Educação de Portugal, conta como colocou em curso mudanças que impactaram positivamente a aprendizagem dos alunos
Ensinar mais, avaliar mais. Esse foi o lema da reforma educacional portuguesa, levada a cabo pelo ex-ministro da Educação do país Nuno Crato, que continuou e aprofundou uma trajetória de ganhos na aprendizagem dos alunos iniciada na virada do século. Crato assumiu o Ministério em 2011 em meio a uma profunda crise fiscal. Mesmo diante de enormes adversidades e de uma sensível redução de recursos para o setor – de 4,9% para 3,9% do PIB –, Portugal conseguiu dar um novo salto de qualidade na educação básica sob sua gestão, encerrada em 2015.
Em recente visita ao Brasil, Nuno Crato conversou longamente com João Batista Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto. Essa conversa é apresentada a seguir. Nela, o ex-ministro português detalha a reforma educacional que colocou em curso, bem como seus desafios e lições aprendidas. Trata-se de ricos ensinamentos para o Brasil, sobretudo num momento de mudanças na esfera federal com a chegada de um novo governo eleito.
A principal mensagem é que, mesmo em um curto espaço de tempo e com recursos limitados, é possível promover avanços significativos que impliquem a melhoria do aprendizado. Para isso, é preciso guiar-se pelas evidências do que de fato funciona em educação e manter o foco no que é essencial: garantir a aprendizagem dos alunos.
Antes da entrevista, uma breve contextualização da realidade portuguesa à época.
Em 2011, Portugal encontrava-se diante de uma gigantesca crise fiscal. Como membro da Comunidade Europeia o país não emite moeda. Portanto, a única saída era reduzir gastos. Toda a história contada a seguir se deu num contexto em que o salário dos professores, que já estava congelado há algum tempo, foi reduzido. Para reduzir custos, foi preciso aumentar ligeiramente o número de alunos por turma. E os recursos sempre foram muito escassos ao longo de todos esses anos.
No início do século, os resultados de Portugal estavam bem aquém da média dos demais países membros da OCDE. Houve fases de aumento e queda, e em 2009 já se encontrava perto da média e começando a declinar ligeiramente.
A situação das escolas era bastante precária devido à escassez de recursos. O nível de reprovação e abandono também era bastante elevado. Clique aqui para observar os índices de reprovação e abandono. Já o nível de formação básica dos professores era bastante razoável – grande parte dos professores das séries iniciais provinha das antigas escolas de magistério, um curso de ensino médio sem grandes ambições acadêmicas, mas que formava professores preparados para ensinar os alunos das séries iniciais. Os professores das séries finais provinham de cursos superiores em diferentes áreas do conhecimento, posteriormente complementados com uma formação pedagógica. Os professores também eram em sua maioria muito experientes. A formação pedagógica, sobretudo a partir dos anos 80, foi se tornando progressivamente mais fraca, concentrando-se menos em preparar os professores sobre como ensinar as disciplinas e mais em conteúdos gerais. Ou seja, embora preparados nas disciplinas, os professores não vinham sendo bem preparados para ensinar.
No entanto, por uma série de razões, esses professores não promoviam a aprendizagem dos alunos de forma adequada. Mesmo contando com professores bem preparados, o sistema não tinha um bom rendimento. Nem mesmo as novas metas curriculares, aprovadas em 2010, tinham causado maior impacto no ensino e no desempenho dos alunos.
A seguir, Nuno Crato fala sobre essa realidade e as políticas colocadas em prática durante a sua bem-sucedida gestão:
O sistema escolar
Portugal é um país relativamente pequeno, em tamanho e população. A população em idade escolar é dramaticamente declinante. A tradição cultural do país é de um forte centralismo burocrático. O sistema escolar não foge a essa tradição. Há cinco unidades regionais que supervisionam, no detalhe, a vida administrativa das escolas. Além delas, um órgão nacional realiza, de forma permanente, uma espécie de auditoria. Dentro da tradição portuguesa, essa estrutura, embora pesada, funciona bastante bem: as instâncias são burocráticas, mas agem para fiscalizar o uso dos recursos e também para ajudar os diretores das escolas a resolver os seus problemas administrativos. Já a parte pedagógica fica inteiramente sob a responsabilidade dos professores e diretores.
Os professores são escolhidos por concurso para as escolas ou para as regiões, chamadas Zonas Pedagógicas, podendo participar de concursos internos quando querem mudar de escola ou de região. Os diretores de escola são escolhidos por um sistema de votação. Votam membros de um Conselho Escolar com representantes da comunidade escolar e extra-escolar. Os diretores têm mandato de quatro anos, podendo ser removidos em caso de conduta inadequada. Eles têm poder e autoridade para comandar a escola e os professores.
O ano letivo tem 180 dias, com cerca de 5 horas de aula por dia – além de atividades extra-curriculares realizadas dentro do período escolar. Famílias com necessidade podem deixar seus filhos na escola por um período maior, e, se tiverem recursos financeiros, pagam ainda um outro período adicional de atenção aos filhos.
A qualidade da educação é aferida pelos testes internacionais – Portugal participa do TIMMS (Trends in Mathematics and Science Study), aplicado sistematicamente aos alunos do 4o e 8o ano desde 2011, mas já tendo feito uma primeira prova em 1995; e do Pisa, aplicado aos alunos de 15 anos de idade, desde o ano 2000. Tradicionalmente há um teste nacional ao final do 9o ano (desde 2009) e outro ao final do 12o ano (desde 1998).
A essência da reforma
A reforma educativa promovida durante minha gestão pode ser resumida em poucas palavras: ensinar mais e avaliar mais. Mas há outros ingredientes importantes da reforma: foco no essencial – o ensino de Língua Portuguesa e Matemática; orientações claras para as escolas e professores; avaliação ajustada com as orientações; divulgação dos resultados com sinalização dos pontos fracos; incentivos para os melhores fazerem ainda melhor. E reduzir ou limitar o resto, inclusive atividades pedagógicas não essenciais e sem objetivo claro. Houve também uma expansão da idade obrigatória até o 12o ano e a criação de cursos vocacionais, além dos cursos técnicos. Agora vamos aos pormenores.
Entrei no Ministério debaixo de uma gigantesca crise financeira – a penúria de recursos era extrema. Não podíamos contar com recursos externos, consultores, promover grandes eventos. Tudo deveria ser feito com poucos recursos. O único fator governamental positivo era o forte apoio que eu recebia do Primeiro Ministro. Ainda que a oposição no Parlamento fosse ferrenha – eu tinha idas programadas lá aproximadamente a cada cinco semanas para explicar as medidas tomadas –, o governo estava convicto da necessidade das reformas e nunca deixou de me apoiar. E tínhamos maioria no Parlamento.
O primeiro passo foi enviar uma mensagem clara à sociedade: o foco da gestão seria na melhoria dos resultados dos alunos e não em processos pedagógicos.
Mas não há nada automático. Havia decisões centrais a serem tomadas e ações a serem executadas, para deixar claro o que as escolas deveriam fazer. Primeiro, deixamos claro que o Ministério passaria a priorizar o ensino da Língua e Matemática. Logo organizei grupos com especialistas da casa e alguns de fora para aprimorar o currículo. Como esse era muito vago, minha orientação foi a de estabelecer o que chamamos de metas – definições claras do que deveria ser ensinado em cada disciplina e série. Clique aqui para ver exemplos das metas.
O grupo era pequeno e formado por pessoas competentes, umas do ponto de vista acadêmico e outras do ponto de vista de experiência prática. Pessoalmente, dei algumas orientações, mas poucas. Para o ensino da Língua Portuguesa, insisti em três aspectos: assegurar a alfabetização imediata dos alunos, promover o desenvolvimento da fluência e estabelecer um cânone mínimo – um conjunto de livros que todos os alunos deveriam ler. Não propus nenhum autor ou título. Deixei isso a cargo da comissão.
Na área de Matemática, de onde eu venho, também havia e ainda há uma série de crenças pouco científicas a respeito de como deva ser o ensino. Um grande número de educadores continuava insistindo na importância de um ensino muito aplicado, muito contextualizado, e sem possibilitar ao aluno a automatização das operações fundamentais. As metas foram desenvolvidas de forma a valorizar o conhecimento a ser ensinado, de forma objetiva e bem sequenciada. O mesmo foi feito para o ensino das Ciências, com ênfase nos conceitos fundamentais que devem ser ensinados e aprendidos.
Terminada essa etapa, submetemos a proposta a um grupo de professores experientes para calibrar a linguagem e verificar se o nível de dificuldade estava compatível com o que se pode esperar dos alunos das várias séries escolares. Feito isso, fizemos uma consulta pública, que trouxe ainda muitas contribuições, e aprovamos o documento, que foi distribuído às escolas. Junto com o currículo seguiram orientações para ampliar o tempo destinado às disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, mesmo que para isso se tivesse de reduzir o tempo de outras atividades, especialmente as atividades extras não-curriculares. Este novo currículo também serviu de base para a montagem do novo sistema de avaliação.
Avaliação
Antigamente, fazíamos apenas a avaliação por exame dos alunos do 9o e do 12o ano. Iniciamos, então, a avaliação dos alunos que concluem o 4o e o 6o ano – duas etapas intermediárias no sistema português de educação. Os testes foram elaborados com base no currículo – parte das questões eram de múltipla-escolha e parte eram de resposta livre. Os testes eram aplicados anualmente.
O mais importante foi o feedback enviado para as escolas, que permitia a elas verificar a natureza dos erros e tomar as medidas para evitar que esses problemas voltassem a ocorrer. Esta foi uma grande inovação em Portugal, e, pelos resultados, parece que funcionou bem. A existência de um conjunto bem definido de metas e de uma prova aderente às mesmas facilitou o trabalho.
Os testes aplicados em diferentes anos são comparáveis de um ponto de vista geral, mas não do ponto de vista estatístico. Não usamos plenamente a T.R.I. (Teoria de Resposta ao Item) ou itens padronizados, como se faz em vários países, inclusive no Brasil. A razão é que a lei portuguesa obriga todos os itens dos testes realizados pelo governo a serem publicados após a sua aplicação, e isso inviabiliza formar e calibrar um banco de itens.
Além da avaliação, da divulgação dos resultados e da devolução do resultado às escolas, instituímos também um sistema de incentivo para as escolas com melhor desempenho: elas passaram a receber créditos adicionais em carga horária para que professores pudessem dar mais atenção aos alunos, especialmente nas áreas de Língua Portuguesa e Matemática, mas também em Ciências, História e Geografia e, depois, em Inglês.
O processo de implementação
O processo de implementação não requereu cuidados especiais. As escolas seriam cobradas pelos resultados e dispunham de autonomia para organizar suas atividades da forma como considerassem adequada. A existência de diretores com autoridade e de professores com experiência e um nível pelo menos razoável de formação foram condições suficientes para que a proposta fosse colocada em prática. A publicidade dos resultados também pode ter contribuído para colocar pressão sobre as escolas. O sistema de incentivos também pode ter contribuído – não temos elementos para separar o impacto desses diferentes componentes da reforma. O que parece relevante é que a mensagem do Ministério era clara: focar no ensino e priorizar as disciplinas de Língua Portuguesa, Matemática e Ciências. A existência de um contingente significativo de professores com contratos provisórios permitiu a redução do efetivo e o remanejo das cargas horárias, sem afetar a vida dos professores que gozavam de contratos com estabilidade.
A importância dos resultados
O quadro abaixo ilustra a evolução dos resultados de Portugal no Pisa, no período de 2000 a 2015. Houve períodos de evolução, alguma involução muito pequena e localizada, e estancamento. Em 2011, ainda estávamos abaixo da média do Pisa; em 2015 conseguimos passar para cima da média. Nesta última fase, os resultados melhoraram nas três disciplinas.
Outro dado significativo – talvez até mais significativo – veio dos resultados do TIMMS. Portugal teve uma evolução considerável desde 1995, mas subiu muito entre 2011 e 2015, obtendo 541 pontos em Matemática, resultado superior ao da Finlândia.
Esses resultados parecem confirmar a eficácia das estratégias adotadas e colocam em cheque muitas opiniões correntes sobre o que efetivamente funciona em educação. Vale observar que desde 2002 o orçamento da educação foi se reduzindo – em parte, é verdade, devido à redução demográfica. Houve um aumento apenas em 2009. Em todo o período, a redução orçamentária foi uma constante.
O papel das evidências na formulação de políticas públicas
Tendo vindo eu mesmo do mundo acadêmico, sempre procurei pautar minhas decisões com base em dados e elementos científicos disponíveis. Atuando muitos anos com a divulgação científica, sempre procurei traduzir os conhecimentos científicos numa linguagem que pudesse ser entendida pelas pessoas comuns. Acho que isso me ajudou muito.
Na área da educação, parece-me que há sobretudo dois grupos de cientistas com contribuições relevantes e práticas. De um lado, os psicólogos – especialmente os psicólogos cognitivos que estudam os processos de aprendizagem e os processos de ensino. Usamos os achados da psicologia cognitiva e a contribuição dos psicólogos para ajudar a melhorar os nossos currículos. Profissionais de renome internacional, como o cientista português José Morais, foram de extrema valia no detalhamento de nosso programa de português, especialmente nas áreas de leitura e alfabetização.
Mas também nos apoiamos e nos inspiramos nos economistas para corroborar a tese de que podemos dar saltos importantes de qualidade na educação com medidas simples e concretas. Eric Hanushek, por exemplo, vem consistentemente ajudando a derrubar mitos a respeito do que efetivamente funciona ou não funciona em educação. Existem dados robustos que podem ajudar os responsáveis pelos sistemas educativos a tomar decisões que contrariam o senso comum, mas ajudam a melhorar a educação.
Ainda os professores
Professores são a peça-chave num sistema educativo. Apesar de os sindicatos sempre defenderem o contrário, os professores em Portugal ganham razoavelmente bem. Por comparação, Portugal é um dos poucos países do mundo em que os professores ganham igual ou mais do que outros profissionais com níveis similares de formação (entretanto, as carreiras de todos os funcionários públicos têm estado congeladas). Ademais, os que são dos quadros usufruem de outras vantagens em relação a outros trabalhadores – entre elas o emprego vitalício e a aposentadoria assegurada pelo governo, em melhores condições do que as concedidas ao pessoal do setor privado.
Isso explica o fato de que as pessoas que se dirigem ao magistério situavam-se entre os melhores de sua geração. Este me parece ser um requisito necessário – embora não suficiente – para assegurar um ensino de qualidade.
Outra questão se refere à capacitação dos professores. Em Portugal, existem regulamentos que permitem e obrigam os professores a participar de um determinado número de horas de capacitação por ano, a título de educação continuada. Parte do tempo deve estar necessariamente relacionado com a disciplina que o professor leciona. Mas essas são decisões pessoais dos professores, com pouco impacto direto no ensino. Para implementar a reforma, não foi necessário nenhum esforço especial de capacitação. Certamente esse tipo de abordagem funciona em países como o nosso, que dispõem de um corpo docente com um nível minimamente adequado de formação básica. Não é um modelo que se pode exportar para países onde isso não ocorre. Mas também apenas a formação básica não garante um bom desempenho dos alunos.
Os desafios continuam
Um regime democrático se caracteriza pela possibilidade da alternância de poder e, em Portugal, o nosso governo foi substituído por outro. O governo que nos sucedeu logo se pôs a desativar alguns dos pilares da reforma descrita acima – em grande parte, com o intuito de agradar os sindicatos. O primeiro passo foi revogar a avaliação do 4o e 6o anos. O passo seguinte consistiu em reduzir o currículo, escolhendo apenas o que consideravam como “essencial” e deixando mais tempo livre para as escolas decidirem o que fazer. Assim, é possível que os avanços alcançados não sejam sustentáveis. Numa democracia, não existe maneira de cristalizar avanços – isso seria incompatível com a liberdade.
Por outro lado, a formação da nova geração de professores das séries iniciais, que passou a ser feita em nível superior, e a fragilidade dos mecanismos de preparação de professores nas práticas de ensino poderão contribuir para reduzir o ímpeto dos avanços conseguidos. Nos próximos anos, começará a chegar a idade de aposentadoria da geração mais antiga de professores, e é possível que as novas gerações não tenham recebido o preparo adequado para os novos desafios. Esse é um grande problema para o futuro. O problema chave!
Lições para outros países
Não existem fórmulas universais para promover reformas e melhorias na educação. Existem princípios gerais – nossa reforma se baseia num deles: mais ensino, mais avaliação. O que fazer e como fazer depende de cada contexto e das possibilidades nele existentes. O que a experiência de Portugal corrobora é o fato de que existem conhecimentos e experiências que tornam possível melhorar a qualidade da educação em prazos relativamente curtos. Também corrobora o fato de que não são necessários recursos mirabolantes nem um tempo absurdamente longo para começar a obter resultados positivos. Nossa experiência também corrobora o fato de que é essencial um quadro de professores de bom nível para avançar e manter avanços. Mas isso é condição necessária, não suficiente. Para avançar, são necessários incentivos adequados e gestão competente.
Para citar:
Crato, Nuno (2018) – “Como a educação de Portugal avançou rapidamente e com pouco recursos”. Entrevista sobre a reforma educativa de Portugal (2011-2015). Rio de Janeiro: Instituto Alfa e Beto.