É preciso reescrever um currículo nacional relevante e necessário para o país. Essa foi a mensagem final deixada pelo pesquisador português José Morais no Webnário Conaler realizado na última terça-feira, 6 de fevereiro, pela Fundação Observatório do Livro e da Leitura. “Quando vemos que uma coisa está errada, devemos parar e refazê-la da maneira correta”, disse Morais ao se referir à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em dezembro pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).
Em uma conversa de quase duas horas com o jornalista Galeno Amorim, presidente da Observatório do Livro e da Leitura, Morais não economizou críticas ao documento. Ele falou, ainda, sobre as evidências científicas em alfabetização, a eficácia do método fônico, a importância da pré-escola para a alfabetização, entre outros assuntos.
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Sintetizamos abaixo os principais trechos do Webnário que certamente recomendamos a todos os interessados em alfabetização e políticas públicas em educação – principalmente gestores, autoridades e formadores de opinião. O Webnário completo está disponível no YouTube e pode ser visto na íntegra gratuitamente.
José Morais é um dos principais pesquisadores do mundo em alfabetização. Professor emérito da Universidade Livre de Bruxelas, contribuiu para a elaboração de políticas públicas educacionais em Portugal e na França. Além disso, é um profundo conhecedor do Brasil, onde já esteve inúmeras vezes e atuou como professor visitante na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
BNCC: equívocos cruciais
A respeito do conteúdo específico da área de alfabetização, o pesquisador foi objetivo: “existem afirmações cruciais que estão erradas”. Não se explica o que são fonemas, exemplificou. “Aparentemente, seus autores nunca chegaram a entender o que é um fonema”. Morais lembrou que na segunda versão da Base aparecia uma definição correta de fonemas, mas que, infelizmente, foi retirada das versões seguintes. Entender o que são os fonemas é fundamental para a alfabetização. Eles podem ser difinidos como entidades elementares da estrutura fonológica da língua que se manifestam nas unidades sonoras mínimas da fala.
Outro erro está em dividir em duas etapas separadas e consecutivas o processo de alfabetização e o de ortografização. Segundo a BNCC, a alfabetização acontece nos dois primeiros anos da educação formal, e o processo de ortografização se dá na sequência e se trata de um processo ‘muito mais longo’. “Diz que é mais longo, mas não diz quanto tempo dura. (…) Isso é aterroizante!”, provocou o pesquisador. “Na linguagem dos cientistas, (ortografização) é a aquisição de um léxico mental em que as representações gráficas estão associadas às representações fonológicas e semânticas”.
A ciência aponta que esse não é um processo que se dá em separado da alfabetização. “A criança não passa dois anos fazendo decodificação e depois faz outra coisa – essas duas fases se sobrepõem. Não existe essa sequência (como preconizada na BNCC).”
Moraes lembrou, ainda, que a linguagem empregada na redação da Base Nacional também chamou sua atenção. “Não está claro para mim a quem ela se destina”, disse. Como uma escrita “doutoral”, o documento é incompreensível para muita gente, inclusive educadores e gestores.
Alfabetização na idade certa
Questionado pelo presidente do Instituto Alfa e Beto, João Batista Araujo e Oliveira, sobre a idade certa para se alfabetizar, Morais lembrou que alguns países iniciam a alfabetização aos 5 anos, como a Inglaterra. Já nos países nórdicos, isso se dá mais tarde, aos 7 anos. No entanto, o que é possível dizer é que “é perfeitamente compatível com o desenvolvimento da criança” que a alfabetização ocorra aos 6 anos de idade. E, se entendermos que ela deve acontecer no 1º ano da educação formal, “é perfeitamente possível que, em um ano escolar, a criança esteja lendo como uma leitora autônoma, sendo capaz de ler tudo. Claro que não é uma leitura rápida e fluente”, mas essa fluência logo virá.
É fundamental, lembra Morais, que as crianças tenham acesso ao que ele chama de literacia emergente antes da alfabetização. Trata-se do contato com o mundo letrado por meio de leituras feitas por um adulto, da exposição a letras e de atividades com o objetivo específico de desenvolver consciência fonológica. Em contextos de pobreza, a literacia emergente é ainda mais importante, pois a criança não recebe tantos estímulos do meio como as crianças mais ricas.
Método fônico
O método pelo qual a criança é alfabetizada faz toda a diferença. E quem diz isso é a ciência. “O que nós descobrimos por meio das pesquisas é que na aprendizagem fônica (aquela feita por meio do método fônico), as crianças aprendem a ler com autonomia mais rapidamente”, explicou Morais.
Em contextos de pobreza e vulnerabilidade social, onde os estímulos são mais escassos em casa e os programas de pré-escola não são consistentes, o método fônico é o mais eficiente na hora da alfabetização. “As crianças mais pobres podem alcançar com mais rapidez as crianças que tiveram uma formação inicial mais forte”, disse.
Moraes citou como exemplo um estudo realizado na Bélgica que comparou crianças alfabetizadas pelo método global (conhecido no Brasil como construtivista) e pelo método fônico. Para isso, as crianças participantes da pesquisa foram avaliadas antes do início do ano letivo – e a diferença entre elas em termos de leitura e escrita era muito pequena. Ao fim de um ano escolar elas foram reavaliadas e aquelas que haviam sido alfabetizadas pelo método fônico apresentaram uma evolução superior àquelas que aprenderam a ler e escrever pelo método global.
A diferença se mostrou ainda mais relevante entre as crianças mais pobres – mesmo vindas de contextos mais desafavorecidos, aquelas que aprenderam pelo método fônico foram capazes de superar defasagens anteriores.
“Estou convencido de que a questão das diferenças do meio pode ter resposta no método fônico – e sobretudo no método fônico. (…) Temos que partir do princípio de que as crianças mais pobres precisam muito ser ajudadas no início, mas de uma maneira que seja fundamentada cientificamente”, disse o pesquisador português.
Convocação
Ao fim de mais de duas horas de conversa, José Morais convocou especialistas, estudiosos, educadores e sociedade civil a reivindicar um currículo nacional mais consistente e alinhado com as evidências científicas. “Quando vemos que uma coisa está errada, está péssima, devemos parar e refazê-la da maneira correta”, disse. Se as autoridades não o fazem, completou, diferentes setores devem se organizar para, juntos, reescreverem a Base. “Isso me parece muito importante”, finalizou.