Nota do Instituto Alfa e Beto:
Este artigo foi publicado originalmente no portal Congresso em Foco
A base nacional comum apresentada pelo MEC foi alvo de muita crítica, o que é natural e esperado. Esse é um assunto sobre o qual dificilmente se consegue consenso em qualquer país, mas isso não impede que os governos ajam. O que não é comum, e merece reflexão, é a forma como a “base” foi desenvolvida. É isso que deve ser questionado, dado que os procedimentos usados não foram os usuais, nem os adequados. A discussão sobre uma base nacional comum deve recomeçar do início, e de forma adequada.
No Congresso Nacional há ritos, procedimentos, prazos e aspectos regimentais que, se não foram obedecidos, invalidam as decisões. Nas instituições sólidas e nas profissões estabelecidas há procedimentos, protocolos e modos de fazer que, se não forem obedecidos, invalidam as ações ou podem levar a processos de “malpractice”, ou erros profissionais.
Nos países desenvolvidos, a definição ou atualização de currículos é sempre precedida de um diagnóstico adequado, seja a partir de avaliações nacionais ou internacionais. Daí se seguem estudos, realizados por pessoas de reconhecida experiência e competência, delineando os contornos do que é necessário fazer, ou rever. Os debates são públicos e as divergências são enormes, mas aos poucos as pessoas se entendem sobre o essencial. Esta é a parte mais importante na confecção de um currículo. Daí saem diretrizes gerais, que nortearão a elaboração dos currículos.
Esses movimentos são amplamente debatidos por iniciativa do governo, do mundo acadêmico ou da sociedade, e dos resultados do debate surgem as diretrizes elaboradas pela comissão geral designada pelos governos. Aí se convocam especialistas – em currículo e nas disciplinas – para desenvolver as propostas específicas para disciplinas e níveis de estudo. Hoje existem duas protocolos de desenvolvimento curricular internacionalmente aceitos. As propostas são devidamente documentadas pela revisão da literatura na área e assinadas pelo grupo responsável.
Daí são realizados mais debates para aparar arestas. Essa proposta, uma vez aprovada, mesmo com votos discordantes, é discutida em foros de editores, autores, professores de notória experiência e gestores, para testar a sensibilidade e antecipar questões práticas de implementação, formação de professores, elaboração de materiais didáticos e avaliação. A partir daí o currículo é implementado de forma progressiva, dependendo do escopo. Os EUA foram uma exceção – mas ainda assim produziram uma interessante proposta para as áreas de Língua e Matemática.
O que vimos no Brasil não teve nada disso. Uma comissão foi anunciada – composta de pessoas com pouca tradição na área – e dois meses depois apareceram volumosos documentos. O MEC não assumiu a autoria e nem deu o nome dos autores, uma espécie de Daniel na cova dos leões. Um prazo – depois dilatado – foi estabelecido para as pessoas se manifestarem via internet. Em nenhum momento houve debate e confronto de ideias, confronto no sentido de haver réplicas, tréplicas e aprofundamento de ideia. Alguns grupos tentaram criar canais de comunicação direta com o Ministério, procedimento certamente bem intencionado, mas questionável do ponto de vista republicano. Só recentemente a grande imprensa – especialmente paulista – começou a se interessar pelo tema.
Os erros e vícios de processo são gigantescos e todos decorrem de imperícia e da falta de um debate preliminar. Um deles foi a decisão de detalhar todas as disciplinas de uma vez – mantendo-nos presos ao século XIX. Outro foram os prazos, inacreditavelmente curtos. Há que se registrar a indefinição do que seja 60% obrigatório e 40% facultativo. E a falta de articulação entre os níveis, especialmente educação infantil. Esses são apenas alguns exemplos que caracterizam a imperícia, fruto do açodamento. É espantoso o silencio do CONSED, da comunidade acadêmica e das associações científicas – e isso pode refletir a eficácia do modelo predominante de cooptação e aparelhamento. De modo particular merece atenção do Senado Federal a decisão do MEC de incluir o ensino médio – o que não é previsto pela Constituição. Não que o MEC seja proibido de fazer isso, mas diante da imperiosa necessidade de repensar o ensino médio, trata-se de uma dupla imprudência.
Não tratamos aqui dos problemas substantivos das propostas, e que começam a ser levantados – com enorme timidez – pela sociedade. Uns são mais evidentes e provocam mais manchetes do que outros, mas seria um equívoco debruçar-se sobre eles antes de questionar a legitimidade e propriedade do processo. O Brasil ganharia muito se, com base no vexame a que o governo se expôs, tivesse a humildade de aprender com os erros e começar de novo, seguindo as melhores práticas internacionais.
Fica a proposta.