Entrevista:
O Tribuna do Ceará conversou com o presidente do Instituto Alfa e Beto, João Batista Araújo e Oliveira, e com o sociólogo e Mestre em Educação Francisco Carlos Araújo Albuquerque, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Para eles, as escolas que ocupam os primeiros lugares no índice não fazem “nada extraordinário”, mas também nada que possa ser chamado de simples: valorização dos professores, boa merenda escolar, foco na frequência dos alunos e uso de técnicas eficazes de ensino.
Os bons resultados são consequências das políticas públicas implementadas em Sobral, Coreaú, Granja e em todos os outros municípios destaques no Ideb. Como bem diz João Batista, “o Brasil tem muito a aprender com o Ceará”.
Confira o Bate-Papo:
Tribuna do Ceará:
As soluções executadas pelas escolas de Sobral, Coreaú e Granja parecem simples, como o controle da frequência escolar, reforço para alunos e valorização dos professores. Vocês consideram soluções de fácil aplicação?
João Batista Araújo e Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto:
Não há nada extraordinário, mas não há nada que possa ser chamado de simples. A meu ver, em Sobral temos uma combinação de escolha de problemas certos combinados a decisões acertadas e que foram implementadas com seriedade e persistência – uma de cada vez. O primeiro passo foi estruturar um currículo, oxigenar a escola e criar espaços para a maior participação e envolvimento dos alunos e instrumentalizar os professores no uso de técnicas eficazes de ensino. Não há nenhum segredo no que se fez, mas não se trata de medidas simples ou triviais de conceber e, sobretudo, de implementar de forma adequada e consistente. Se fosse fácil muita gente já teria copiado.
“Não é o aluno que abandona a escola, é a escola que abandona o aluno”
(João Batista)
Francisco Carlos Araújo Albuquerque, professor da Universidade Estadual do Ceará:
Se esses municípios conseguiram é de se esperar que outros possam fazê-lo. A política de educação das últimas gestões do governo cearense (principalmente nos últimos dez anos) tem afunilado as relações, via regime de colaboração, entre o estado e os municípios, no plano de assessoria pedagógica e de política fiscal. Só uma observação, talvez o ponto mais lento de implementação são as políticas de valorização do magistério, pois o quadro de exigência do trabalho docente é inversamente proporcional aos seus ganhos e, por serem majoritários, no quadro geral dos funcionários, são os que mais sofrem com os constantes ajustes fiscais feitos no Brasil desde os anos 1990.
“Se esses municípios conseguiram é de se esperar que outros possam fazê-lo”
(Francisco Carlos)
Tribuna do Ceará:
Em geral, é frequente se pontuar que é necessário mais investimento financeiro para que determinada área, seja saúde, seja educação, consiga render melhores resultados. Dinheiro é um aspecto fundamental para o avanço na educação?
João Batista:
O assunto é muito estudado, e as evidências internacionais são claras. Primeiro, há um limite de recursos abaixo do qual dificilmente se obtêm bons resultados. O problema é que ninguém sabe muito bem qual é esse limite. O segundo é que há um limite acima do qual mais recursos não melhoram a aprendizagem. Esse limite é conhecido. As evidências no Brasil mostram que não há relação entre gastos e resultados, mas isso precisa ser qualificado. Primeiro, os estados e municípios que gastam mais não são os que têm melhores resultados, especialmente se controlarmos o nível socioeconômico dos alunos. Segundo, há enorme ineficiência nos gastos com educação no Brasil: má localização de escola, escolas com tamanho inadequado, regras inadequadas para alocar pessoal as escolas, regras inadequadas para pagar professores, desperdícios com programas sem qualquer resultado, e por aí vai. O Ministério da Educação (MEC) é o campeão em gastos desnecessários e ineficientes, e constitui um péssimo exemplo para os estados e municípios. Dos mais de 40 programas iniciados pelo MEC, nos últimos 15 anos, muitos dos quais vêm sendo continuados na presente gestão não apresentam nenhuma evidência de impacto. O Brasil precisa gastar um pouco mais em educação, mas só deve aumentar seus investimentos depois que criar condições e estímulos para que os gestores da educação sejam eficientes.
Tribuna do Ceará:
Nas escolas visitadas, a taxa de abandono chega a ser de 0%, apesar de todas as dificuldades enfrentadas por uma população carente. A que é possível atribuir esse compromisso com a vida escolar, geralmente em um cenário de baixo nível educacional da família dos alunos, por exemplo?
João Batista:
Não é o aluno que abandona a escola, é a escola que abandona o aluno. Hoje dispomos de técnicas estatísticas que nos permitem prever quem são os alunos que provavelmente desistirão da escola entre os 13 e 15 anos de idade. Parte do problema vem de casa, claro, há muitas crianças que já trazem consigo marcas e experiências que não facilitam seu ajustamento às exigências da escola. Mas é a escola que abandona os alunos: é a escola que não acolhe as crianças, que não as alfabetiza no 1o ano, que não cuida do sucesso de cada aluno, que não se importa se o aluno é frequente ou não, que adota práticas de reprovação em massa.
Francisco Carlos:
A escola, a educação, embora se fale muito (principalmente em períodos eleitorais), é um tema, concretamente, que move pouco a sociedade brasileira. Você não vê manifestações grandiosas sobre alguma pauta da educação. Por outro lado, parece que certas administrações locais (ou pouco mais do que isso) conseguem chamar a atenção de suas comunidades sobre a importância da escolarização de seus filhos. Há um dado importante dessas recentes gerações, seu grau de escolarização é superior ao de seus antecedentes.
Tribuna do Ceará:
No Ideb, do 1° ao 5° ano do Ensino Fundamental, a nota geral foi de 5,5, superando a meta estabelecida para 2021, de 5,2. Já nas séries finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio as metas nacionais não foram alcançadas. Do 6° ao 9° ano, a meta estimada era de 4,7, mas ficou em 4,5. As escolas do Ensino Médio registraram índice de 3,7, abaixo da meta de 4,3. Por que os avanços dos primeiros anos do Ensino Fundamental não são refletidos nas outras séries?
João Batista:
Aqui entramos no cerne da questão e nos limites do que é possível fazer. Nas séries iniciais, mesmo com professores com nível intelectual e formação muito precária, como é o caso da maioria no país, é possível conseguir obter um desempenho razoável com a adoção de determinadas estratégias pedagógicas, conhecidas sob o nome de “ensino estruturado”. Nas séries finais, isso é muito mais difícil, por duas razões principais. A primeira delas é que, mesmo adotando os princípios gerais do ensino estruturado, a dependência das competências do professor é muito maior. A segunda é que, dado o perfil das pessoas que atuam nesse nível de ensino, é mais difícil adotar e manter essas estratégias durante muito tempo. A história da evolução dos sistemas educativos também é a história da melhoria do nível das pessoas que vão para o magistério. Para atingir níveis mais elevados de desempenho, é essencial mudar o nível de entrada das pessoas que são atraídas para as carreiras do magistério. Nos países desenvolvidos os futuros professores normalmente se encontram entre os 30% melhores alunos do ensino médio. No Brasil, eles estão entre os 10% piores. E os governos, no Brasil, ainda não se decidiram a enfrentar esse desafio.
Francisco Carlos:
Já que a obrigação da oferta dos ensinos fundamental e médio é descentralizada e de responsabilidade de municípios e estados, observa-se uma enorme rede de assimetrias na política e na gestão educacional, mesmo como o monitoramento do Ministério da Educação. Há uma diversidade de avanços e retrocessos, que têm a ver com vários pontos: descontinuidade das políticas, refluxos nos recursos, e quando se chega ao ensino médio há uma complexidade de questões que passam por sua redefinição. Talvez o único consenso na recente polêmica da reforma foi a necessidade de fazê-la, daí em diante o quadro se torna complexo e conflitante.
Tribuna do Ceará:
Considerando o resultado das escolas brasileiras como um todo em avaliações de educação, como Prova Brasil, Saeb e Pisa, há o que celebrar?
João Batista:
Há muito pouco a celebrar, e pouca gente tem o que celebrar. Nós temos dois dados muito tristes em todas essas provas: mais de metade dos alunos, em todas elas, não atinge os níveis mínimos de desempenho. São pessoas que pouco proveito vão tirar de sua experiência escolar. O que vemos nos municípios que se destacam é que eles são bons porque cuidam de todos os alunos, e não porque têm uma ou duas escolas-modelo. O outro dado triste é o desempenho dos melhores alunos brasileiros. No Pisa, por exemplo, o grupo dos 5% melhores alunos brasileiros tem nota semelhante à média dos alunos dos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] – e aí se incluem alunos de escolas privadas e das escolas federais. Ou seja: nossas elites são medíocres, e um país com elites medíocres será um país medíocre.
Tribuna do Ceará:
Apesar dos bons exemplos de muitas escolas, a educação pública ainda é vista, por boa parte da população, como ruim, principalmente em comparação ao ensino privado. Priorizar o ensino privado ao público ainda é uma necessidade no Brasil ou um ponto de vista preconceituoso?
João Batista:
Oxalá a população tivesse essa percepção! Todos os estudos realizados com pais de alunos de escolas públicas mostram um elevado grau de satisfação com a educação. Em parte isso pode se dever à forma como se fazem essas pesquisas, mas há razões para essa percepção positiva. A primeira é a comparação: a saúde, o emprego, o transporte urbana, a polícia, o acesso à justiça, tudo isso parece mais grave do que a educação. As escolas funcionam mais e melhor do que os outros serviços, especialmente no que diz respeito a condições físicas e de acesso. A segunda é o fato de que a maioria dos alunos hoje matriculados têm e terão maior nível de escolaridade do que seus pais. O nível médio de escolaridade da população economicamente ativa no Brasil é de 7 anos de escolaridade, hoje a maioria dos jovens conclui o ensino fundamental e uma grande parcela conclui o ensino médio. Finalmente, há o problema de entendimento a respeito da importância da qualidade da educação e de outras variáveis relevantes do processo educativo por parte de uma população de baixa escolaridade e que não enxerga com clareza os benefícios de estudar com afinco no seu ambiente mais próximo.
Tribuna do Ceará:
De que forma a PEC 241, que estabelece teto nos gastos públicos, pode afetar a educação no País?
João Batista:
A PEC certamente afetará os gastos em educação na medida em que haverá uma freada nos gastos e nos aumentos de gastos. O desafio é saber se isso servirá como oportunidade para rever as ineficiências nos gastos. Esta é uma oportunidade ímpar para os governantes, especialmente para os prefeitos que assumem seus mandatos, reverem as prioridades e estruturas de gastos, e promoverem um ajuste estrutural. Se isso ocorrer agora, a retomada do crescimento que todos esperamos, no médio prazo, poderá servir para inaugurar um ciclo de gastos virtuosos em educação. Não vale a pena jogar mais dinheiro num sistema que desperdiça muito e gasta mal.
Tribuna do Ceará:
Em relação ao desempenho de outros países em educação, em quais aspectos o Brasil deve focar para termos um nível de excelência nessa área?
Francisco Carlos:
Na educação, o Brasil tem uma pauta um pouco anacrônica, no sentido da evolução histórica. Falamos ainda em alfabetização de levas populacionais significativas e de escolarização da educação básica (assunto do fim do século XIX, início do século XX nos países desenvolvidos, e mesmo em países da América Latina, como a Argentina), ao mesmo tempo em que criticamos o modelo tradicional de fazer escola que perdura há mais de dois séculos, falamos das inovações tecnológicas na educação e da escola de tempo integral. O ponto prioritário certamente se refere aos aspectos inicialmente citados aqui: é fundamental melhorar a educação básica, garantindo acesso e qualidade. Qualidade que não signifique apenas uma visão pragmática da educação voltada para o mercado de trabalho, mas que forme ética, política e cientificamente esse novo aluno. Mas também, a educação pública não pode se furtar de uma política agressiva de ensino superior, ciência e tecnologia, inclusive, enquanto pautas para soberania nacional.
Tribuna do Ceará:
O que as escolas do Brasil têm a aprender com as escolas do Ceará que ocupam os primeiros lugares do Ideb?
Francisco Carlos Araújo Albuquerque:
A experiência cearense já é vista e estudada há algum tempo, desde os anos 1990. No caso específico, a agenda gerencial e pedagógica adotada se guia na experiência de Sobral e de programas governamentais da educação no estado desde 2007, como o caso do Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic), que tem metodologia semelhante. O diferencial dessas experiências talvez se encontre numa prática que trouxe resultados, pois seu receituário era relativamente conhecido. Vale dizer que, apesar dos resultados, ele não é um consenso na escola e nos meios acadêmicos, apresentando reparos em relação à autonomia do professor, as formas de gestão e um possível exagero na intensidade de utilização da avaliação. A experiência desses municípios – e o caso de Sobral é paradigmático – em termos gerais, mostra a concreta possibilidade de se atacar os problemas históricos e graves da educação brasileira: analfabetismo e baixa escolarização.
João Batista Araújo e Oliveira:
O que vemos no Ceará é diferente do que vemos em Sobral, e os dois fatos são relevantes. O que vemos no Ceará é o êxito de uma política estadual de incentivo aos municípios. Essa política iniciada em torno do tema da alfabetização inclui vários elementos, tais como instrumentos pedagógicos e incentivos. Não é possível identificar quais elementos foram mais importantes, mas o Ceará é o único estado brasileiro que conseguiu implementar uma política de melhoria da qualidade das séries iniciais que produziu resultados importantes de maneira consistente. O caso de Sobral é diferente – o que temos aí é o impacto de uma política local sobre toda a rede de ensino. O que chama atenção em Sobral não é apenas a boa nota das escolas, é o fato de que todas as escolas são boas. Ou seja, é o único caso, no país, em que todas as escolas públicas no município funcionam dentro de elevados padrões de ensino. O fato importante é entender como políticas públicas foram capazes de afetar o funcionamento das escolas. Nesse aspecto o Brasil tem muito a aprender com Ceará e Sobral.