Este artigo faz parte de uma série que debate em dez capítulos questões fundamentais para o avanço da educação no Brasil. As publicações acontecem em comemoração aos 10 anos de atuação do Instituto Alfa e Beto. Leia AQUI a série completa de artigos.
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No momento em que o país parece perplexo com as revelações escandalosas sobre corrupção e com a situação não menos vergonhosa da economia, parece um luxo querer debater um novo currículo para a educação nacional.
Entretanto, tivéssemos feito essa discussão e implementado um currículo de padrão de país desenvolvido nos últimos 20 anos, o desemprego, o desalento da juventude e a capacidade de superar problemas estruturais poderiam ser diferentes, possivelmente para melhor. Currículo não faz milagres, mas ajuda a mudar um país de maneira estrutural. Aparentemente, é por isso que a sociedade brasileira vem clamando: um país menos injusto, mais rico, com melhor padrão de vida e com um Estado que trabalhe para seu povo, não apenas para seus sócios. Um país que pode ser construído a partir de instituições respeitáveis sim, incluindo educação pública de alta qualidade.
Se neste momento avassalador for possível debater o tema, o primeiro argumento a se abandonar é deixar de comparar a versão 2 do documento da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) com sua antecessora e compará-la com os documentos curriculares de países desenvolvidos, como algumas províncias do Canadá, o Reino Unido, a França, e Portugal e o americano Common Core. Melhor esquecer a Austrália como referência curricular, pois é um documento cheio de “pontas soltas”. O Brasil de hoje, com seus docentes fragilmente preparados, que precisam educar crianças e jovens de famílias de baixo nível sociocultural, com um dia letivo de menos de 4 horas e escolas com infraestrutura rarefeita, precisa de um currículo bem claro, bem ordenado e bem estruturado, que mostre claramente o que se espera que os alunos aprendam em cada ano letivo, mas com uma “barra” de qualidade bem mais alta.
Ontário, por exemplo, decidiu que em termos de compreensão textual seus alunos atingiriam o nível 3 do Pisa no 6º ano, que é quando termina a educação primária na província canadense. No Reino Unido, os alunos aprendem mais estatística antes de entrar no ensino médio que um aluno de primeiro ano universitário no Brasil na maior parte dos cursos de humanas. Em Portugal, os Lusíadas e a Carta de Pero Vaz de Caminha são obrigatoriamente ensinados no 9º ano.
Mencionando essas diferenças outro dia ouvi de um típico representante do corporativismo tupiniquim, “mas olha o nível de renda desses países”. Então o raciocínio (ou o argumento falacioso) é: pobre não deve ler Camões. Ou, se professor brasileiro não ganhar o equivalente a um professor português, não deve trabalhar o Poeta com seus alunos. Foi esse mesmo corporativismo que conseguiu fazer passar um Plano Nacional de Educação que gostaria de abocanhar 10% do PIB, formar o máximo possível de professores em nível de mestrado e doutorado, apenas para alcançar, em 2024 o nível 2 do Pisa para os alunos de 15 anos, normalmente no 1º ano do ensino médio, ou seja, entregaríamos 1/10 da nossa produção de riqueza para em mais 8 anos chegarmos com nossos alunos um nível abaixo do que Ontário chega hoje para os alunos de 12 anos.
Mesmo que hoje seja mais importante e urgente comparar taxas de juro, decisões do STF e do Congresso Nacional, não podemos descuidar do debate específico do que a BNCC vai determinar em termos de objetivos pedagógicos. Com certeza, é possível fazer muito mais com o que se gasta hoje com educação, objetivos mais arrojados ainda podem ser introduzidos. Entretanto, com objetivos pedagógicos realmente ambiciosos e um pouco mais de recursos bem alocados, pode-se fazer uma verdadeira revolução educacional no país.
Por exemplo, é preciso especial atenção com o início da escolarização, devemos exigir que a BNCC mapeie e explicite todos os objetivos pedagógicos desde a educação infantil que levam à alfabetização, caracterizada pela leitura fluente e escrita de textos curtos por todos os alunos, até o fim do 1º ano do ensino fundamental. Não no 3º, como conseguiram impor os super combativos corporativistas da educação. Se o aluno aprende a ler a escrever apenas com 8 anos, como pode compreender, analisar e comparar textos mais complexos e antagônicos aos 12 anos, ou mesmo aos 15, o que nos faria alcançar, em média, o nível 3 do Pisa como os países da OCDE?
O Estado brasileiro deve garantir à sua população uma educação de país desenvolvido, de padrão FIFA, mas sem a corrupção desta. Da mesma forma que apanhamos na Copa do Mundo e vamos passar maus bocados na operacionalização das Olimpíadas, vamos continuar vivendo vexame com nossa educação se a BNCC não for um documento realmente inovador e audacioso. Temos uma incrível oportunidade de virar a mesa agora e estabelecer padrões de desempenho para nossa educação dos quais não tenhamos mais que nos envergonhar. Cabe às autoridades máximas da educação brasileira comandar a elaboração de um documento de padrão internacional, sem concessões. Pode ser que elas façam como as suas contrapartes e estabeleçam comitês de especialistas que façam uma revisão bibliográfica do que melhor se fez no mundo, ou se deixem levar pelos feudos acadêmicos e sindicais, ou mesmo apenas pela inexperiência com as referências internacionais. Mesmo que não se as conheça em profundidade hoje, ainda dá tempo de fazê-lo. Quanto à sociedade brasileira, a exigência de altos padrões curriculares deve pautar as novas palavras de ordem das ruas daqui pra frente.
*Ilona Becskeházy é jornalista e mestre em Educação, com pesquisa voltada para a análise internacional de currículos escolares. É uma das vozes mais ativas no debate sobre a Base Nacional Comum no Brasil.