Nota do Instituto Alfa e Beto:
Este artigo foi publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo
Cláudio de Moura Castro, João Batista Araujo e Oliveira e Simon Schwartzman são, respectivamente, M.A., PH.D., pesquisador em educação; presidente do instituto Alfa e Beto; e pesquisador do Instituto de Estudos do trabalho e Sociedade (IETS) no Rio de Janeiro.
A educação brasileira continua péssima pelos padrões internacionais, apesar dos sucessivos Planos Nacionais de Educação (PNEs) e do enorme aumento de gastos, que passaram de 4% para 9,3% da receita líquida do Tesouro Nacional entre 2004 e 2014. Em diversos momentos, cada um dos autores deste artigo já comentou a respeito dos equívocos do plano atual, uma grande lista desconexa de metas sem prioridades nem mecanismos efetivos de concretização. Uma dessas metas é criar um “Sistema Nacional de Educação” (SNE) cujo formato está sendo proposto agora pelo MEC. Se essa proposta vingar, o mais provável é que a burocracia e os custos aumentem e a qualidade da educação piore ainda mais. Como concebido, tal sistema engessa definitivamente o setor, entroniza o corporativismo e destrói o que quer fortalecer, o combalido federalismo.
Dois documentos, um de 2014 e outro recente, de 2015, especificam o que se pretende. O primeiro estabelece uma lei complementar para tratar do regime de “cooperação” – termo novo substituindo o regime de colaboração previsto na Constituição. O segundo cria um emaranhado de instâncias consultivas e deliberativas entre municípios, Estados e governo federal, que supostamente ajudariam a resolver os problemas de qualidade e equidade da educação.
Em nenhum país sério as decisões sobre educação são tomadas por meio de negociações recorrentes e intermináveis entre sindicatos, professores, grupos de interesse e governos locais, estaduais e nacionais. O cipoal de instâncias burocráticas e consultivas propostas destrói qualquer possibilidade de políticas inteligentes, criando um nevoeiro de vozes cacofônicas. Há dezenas de países com regime federalista, incluindo Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Rússia, Suíça e Estados Unidos. O grau de descentralização e autonomia dessas federações é muito variável, mas em nenhuma delas há algo parecido com o que se propõe para o SNE, e todas estão bem nas avaliações da educação da OCDE, o Pisa.
O federalismo ajuda ou atrapalha? Estudo recente sobre o federalismo alemão mostra como uma única iniciativa – educação infantil de qualidade – seria capaz de neutralizar as desigualdades regionais, atribuídas muitas vezes às diferentes maneiras como as regiões organizam seus sistemas escolares. A lição é clara: para lidar com os problemas de equidade e qualidade são necessárias políticas focalizadas, viáveis e consistentes – e não arranjos institucionais complexos.
O discurso em torno do PNE e do SNE pareceria promover o federalismo. Mas nas últimas semanas o que se viu foi um movimento para pressionar Estados e municípios a aprovar a toque de caixa suas “leis” da educação, sugerindo o oposto: um forte movimento de centralização e uniformização. Chegou-se a distribuir “a” minuta do projeto de lei – a mesma para todo o País. Amedrontaram os municípios com o argumento de que sem tais leis aprovadas não teriam acesso aos recursos do MEC. Pouco mais de mil leis, praticamente iguais, foram aprovadas nestas últimas semanas.
Se é para copiar e colar, para que tanta burocracia? E alguém acredita que esse papelório vai fazer alguma diferença?
Como estabelecer as responsabilidades de cada instância da Federação? A educação básica é atribuição de Estados e municípios, que variam muito em termos de recursos e capacidade gerencial. O governo federal tem importantes papéis a cumprir, levando à frente a proposta de uma base nacional comum para a educação fundamental, estabelecendo padrões de qualidade, melhorando os sistemas de avaliação, estimulando a formação de bons professores, certificando diretores, aprimorando os mecanismos de seleção de livros didáticos, proporcionando assistência técnica e complementando os recursos das redes escolares mais carentes. Os Estados, por sua vez, poderiam promover a municipalização do ensino fundamental e concentrar-se em diversificar o ensino médio, com suas variantes acadêmicas e profissionais, como ocorre em todo o mundo – isso já seria um grande avanço. Ambos poderiam criar incentivos para estimular iniciativas eficazes e diversificadas dos municípios, que não podem ser tratados como se os 3.914 com menos de 20 mil habitantes fossem iguais a São Paulo, ou ao Rio de Janeiro, ou a Belo Horizonte.
Dentro do próprio governo existem propostas interessantes, como a do ministro Mangabeira Unger, de usar recursos federais para premiar professores que atingirem determinados patamares de desempenho. Se esses professores fossem destinados às turmas e escolas mais fracas, isso poderia produzir muito mais ganhos de equidade e qualidade do que realizar 5.500 conferências municipais de educação.
Tudo isso pode ser feito dentro da atual legislação. Além de trazer complicações desnecessárias, o SNE exigiria recursos adicionais, que hoje não existem, e se existissem, deveriam ser aplicados em projetos bem definidos, com metas claras e mecanismos também claros de avaliação de resultados. Para promover a eficiência e equidade existem dois mecanismos conhecidos: os incentivos, estimulando e premiando as boas práticas; e as regras hierárquicas, em que as autoridades governamentais usam de sua autoridade legal para cumprir os objetivos para os quais foram eleitos ou nomeados. Em seu lugar, o SNE propõe regras complexas e inviáveis, a serem estabelecidas por assembleias, comitês, conselhos e uma infinidade de órgãos, que, em última análise, diluem as responsabilidades.
Em contraste, o uso criativo de bons sistemas de incentivo, associados a estímulo à diversidade, autonomia, iniciativa local e simplificação de procedimentos, costuma ser muito mais eficaz. A experiência internacional mostra que há maneiras muito mais simples e eficazes de oferecer ensino de qualidade do que as propostas do PNE e do SNE.