Nota do Instituto Alfa e Beto:
Este artigo foi publicado originalmente no jornal Valor Econômico
A crise econômica tem suscitado alertas a respeito do risco de aumentar as desigualdades em educação. Reportagem do Valor (edição 2/2/2016) reproduz esse debate e acrescenta um novo tema, o de que seria impróprio falar de meritocracia num sistema injusto. Recente publicação da OCDE, de 10 de fevereiro de 2016, joga lenha na fogueira ao apresentar dados sobre o desempenho dos alunos que não atingem níveis mínimos em Linguagem, Ciências e Matemática. Dentre 74 países, o Brasil fica entre os 4 piores na maioria desses indicadores. Propomos aqui uma reflexão sobre essas essa questão: a desigualdade invalida a meritocracia?
Analisemos primeiro as desigualdades em educação. Podem ocorrer de três maneiras: de acesso, de progresso e de sucesso. No Brasil, padecemos de todas e as vítimas são sempre as mesmas - majoritariamente, as crianças provenientes de ambientes socioeconômicos mais desfavorecidos, a maioria da população.
O tema das desigualdades é clássico. O sistema educacional causa, reproduz ou amplia as desigualdades sociais? Poderia atenuá-las ou mudá-las?
Num país tão desigual quanto o Brasil os mecanismos em vigor conspiram contra os mais desfavorecidos. Nascemos desiguais em vários aspectos, portanto a educação não causa a desigualdade. Nascemos desiguais especialmente em relação ao talento, matéria prima essencial para o sucesso escolar. O referido estudo da OCDE mostra que no Pisa quase 50% dos brasileiros estão abaixo do mínimo nas 3 provas, e 70% dos alunos brasileiros ficam abaixo do mínimo. Mas os dados do Pisa também mostram que falhamos em estimular os melhores a dar o melhor de si, na escola e na vida. Na outra ponta, nossas elites acadêmicas são fraquíssimas - os 10% melhores do Brasil no Pisa se equiparam com os que se situam na média dos países industrializados.
A educação reproduz as desigualdades sociais? Essencialmente sim, como já registrado no clássico estudo de James Coleman na década de 60. Mas não é uma fatalidade: políticas sociais de primeira infância, políticas educacionais adequadas e uma boa escola podem contribuir para reduzir desigualdades ou para dar maior chance de sucesso para quem vêm das camadas socioeconômicas mais baixas. Mas a mesma escola que pode reproduzir também pode ampliar essas desigualdades, dependendo das políticas que adota. Nos dois Brasis da escola pública e privada a diferença não é ainda maior por falta de maior esforço das próprias escolas particulares e seus alunos.
Da mesma forma, políticas educacionais equivocadas contribuem para manter ou aumentar as diferenças, como, por exemplo, políticas que criam isenções de IR para despesas educacionais dos mais favorecidos com filhos em escolas privadas ou políticas que proveem ensino superior gratuito para quem pode pagar.
Resta examinar a afirmação de que a crise pode levar à redução de recursos e que esta, fatalmente, afetaria os mais desfavorecidos. A afirmação não se sustenta. Primeiro, porque as políticas educacionais em curso não têm favorecido especialmente os desfavorecidos - muitas delas, ao contrário aumentam as desigualdades. Segundo, porque diante de uma crise seria mais razoável repensar as políticas que levam a gastos ineficientes do que em manter o atual nível de ineficiência. Faz mais sentido discutir a qualidade dos gastos e reorientálos para reduzir desigualdades do que defender a manutenção do status quo, que está se revelando insustentável. O argumento é frágil e conformista.
A sugestão de que não podemos falar em meritocracia num sistema desigual é discutível e implica que não se poderia falar em qualidade ou cobrar desempenho num sistema tão desigual.
Resultados educacionais dependem de dois ingredientes básicos: talento e esforço. Esses dois fatores explicam o desempenho escolar muito mais do que o nível socioeconômico dos alunos. O talento depende fundamentalmente do berço, mas pode ser afetado nos primeiros anos de vida, e tem impacto maior quanto menor for o nível cognitivo dos indivíduos. Portanto, não apenas é possível promover essa melhoria, como se deve cobrá-la dos responsáveis pela formulação e condução de políticas públicas: é nas políticas de combate à pobreza, no prénatal e nos programas de primeira infância de alta qualidade que podemos não apenas reduzir desigualdades, mas aumentar as chances de sucesso das pessoas na escola e na vida.
Somos desiguais desde o nascimento - e a desigualdade pode ser atenuada dentro de limites razoáveis, embora relativamente reduzidos. A desigualdade ao nascer pode ser atenuada e reduzir a desigualdade na entrada da escola, mas esta sempre existirá.
Dentro do espaço que sobra para a educação formal, a escola, esta só serve à sociedade na medida em que funda sua ação em critérios meritocráticos. O que compete à educação e à escola não é aniquilar o mérito, mas assegurar condições para que todos possam entrar, competir e todos possam atingir o seu pleno potencial. Esse potencial sempre será diferente e profundamente marcado pelas condições de partida na loteria do nascimento e nos anos iniciais da vida. Uma boa escola estimula o esforço dos alunos e pode e deve ser cobrada por isso, da mesma forma que os alunos devem responder pelo seu trabalho, cada um dentro de suas potencialidades.
Injustiça é tratar igualmente os desiguais. Tanto o ideal da igualdade quanto o da meritocracia exigem políticas estruturais de atendimento diferenciado e que incluem diferenciação de ritmos para os mais lentos, os mais rápidos e os médios, diferenciação de demandas e desafios e, a partir do ensino médio, diferenciação de percursos de formação. Uma fórmula para ajudar no sucesso é misturar alunos de nível socioeconômico mais baixo com alunos de nível socioeconômico mais elevado na mesma escola. Mas num país de ampla maioria pobre essa fórmula não funciona: precisamos de outras soluções.
Crises são oportunidades para cortar desperdícios ou até mesmo para destruições criativas. Não seria mais prudente, ao invés de alimentar a ineficiência com recursos cada vez mais escassos, aproveitar esta crise profunda para repensar a educação, começando por ajustes ou, se possível, revisões profundas em seu financiamento e na forma de organização das escolas e do ensino dentro delas?