Em 2014, o Instituto Alfa e Beto realizou seu VII Seminário Internacional, que debateu o tema da alfabetização à luz das evidências científicas mais robustas. Na ocasião, a pesquisadora São Luís Castro, uma das responsáveis pela atualização dos currículos e da avaliação da leitura em Portugal, emitiu um alerta às autoridades brasileiras: o instrumento usado para avaliar a alfabetização, que na época se chamava Provinha Brasil, não mede as habilidades que nos permitem inferir se o aluno foi ou não alfabetizado. Ou seja, o teste não possui validade.
A especialista observou que faltam princípios básicos para medir com precisão o nível de aprendizado dos alunos, além de uma definição clara do que seja alfabetizar e das habilidades que compõem esse construto.
A crítica, embora antiga, ressurge nesse momento em que o Ministério da Educação divulga os resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) – que mantém as mesmas características do teste anterior – e lança uma “nova” política nacional para reverter os índices desastrosos de leitura e escrita
Quando se trata de políticas públicas na área de alfabetização, um problema se repete no Brasil de forma sistemática: a falta de clareza e objetividade na definição do que seja alfabetizar. Alguns documentos oficiais – como a ANA – já delimitam que alfabetizar é ensinar o código alfabético, o que é correto. Mas os mesmos documentos tergiversam sobre o tema usando expressões como “mas não é só”, “é também” e outros complementos que esvaziam a definição. Com isso, torna-se impossível delimitar sobre o que se está falando. A confusão introduzida com o indefinido termo “letramento” contribui para aumentar a poeira. A confusão é conceitual, mas tem implicações para a avaliação e para o ensino.
Este é um problema encontrado tanto na ANA quanto na recém-anunciada Política Nacional de Alfabetização. Esta, por sua vez, baseia-se na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), cujas críticas já foram registradas em nosso site.
As fragilidades da ANA
Além da falta de clareza conceitual, a ANA exibe outras fragilidades, como a forma de avaliar os itens pertinentes à alfabetização.
Os tipos de questões do teste aplicado aos alunos são poucos e insuficientes para identificar os principais componentes do processo de alfabetização. Isso faz com que o diagnóstico elaborado a partir dos resultados da prova seja impreciso, pois fornece pouca informação a respeito de pontos essenciais do processo de alfabetização. Logo, as chances de sucesso de uma intervenção diminuem consideravelmente.
Além disso, os critérios para considerar um item (ou questão) como correto discrepam dos conhecimentos científicos sobre o tema. Por exemplo, a ANA considera adequado – para alunos de 3o ano – uma grafia que não reproduz pelo menos um grafema para cada fonema, o que constitui um erro conceitual crasso.
O terceiro problema se reflete na confusão entre escrever e redigir, e entre ler e compreender, resultado da falta de clareza conceitual sobre o que é alfabetização. A ANA trata dos indicadores de decodificação junto com indicadores de compreensão ou produção de textos. E a não separação clara reflete e envia mensagens equivocadas para as redes de ensino sobre esses diferentes componentes.
O déjà vu da “Política Nacional de Alfabetização”
É imprescindível lembrar que nos últimos 25 anos o MEC implementou mais de 40 programas ou políticas voltadas para diversos elementos da educação. Poucos deles foram avaliados e, os que o foram, representam retumbantes fracassos. Portanto, não há na anunciada Política Nacional de Alfabetização razões para euforia nem longos comentários.
Ao elaborar uma nova política – que se parece mais a um programa, já que política pressupõe um processo mais complexo e amplo –, o Ministério desconsidera a evidência científica sobre o que funciona em alfabetização e a evidência empírica, no Brasil, sobre intervenções eficazes. Ao contrário, apoia-se exatamente no que não funciona.
Mais uma vez, trata-se de uma iniciativa que não segue um processo devido e usual nos países onde a educação funciona.
Além de vários vícios de origem, a atual proposta padece de pressupostos equivocados, como assumir que o problema principal da alfabetização no Brasil é a capacitação de professores. Não é.
O principal obstáculo à plena alfabetização das crianças se encontra dentro do próprio MEC, que se recusa a adotar o saber científico mais robusto sobre o tema, adotado pelos países que mais avançam em educação no mundo e difundido pelos mais capacitados especialistas brasileiros. Infelizmente, não há no horizonte perspectiva de que isso aconteça.
Os anúncios recentes dão a certeza de que a questão da alfabetização seguirá sem solução – ignorando as evidências científicas na área, continuaremos desperdiçando o dinheiro públicos em “novos” programas nada eficientes.