No dia 8 de setembro, foi comemorado o Dia Mundial da Alfabetização. Aproveitamos a data para compartilhar com nossos leitores reflexões e leituras a respeito de tema. Ao longo deste mês serão publicados neste espaço quatro posts. Clique aqui para acessar o primeiro post, de semana passada.
Enquanto assistimos ao impasse entre o Ministério da Educação (MEC) e o Conselho Nacional de Educação (CNE), que parecem divergir sobre se a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) deve prever o ensino da a
Instituto Alfa e Betolfabetização até o segundo ou no terceiro ano do Ensino Fundamental, resta-nos a certeza de que o País está perdendo, mais uma vez, a oportunidade de implementar políticas públicas educacionais em sintonia com as evidências científicas – e com o que é praticado nos países que exibem bons índices educacionais.
As evidências apontam que a alfabetização deve começar no primeiro ano da escola formal. Isso porque, ao final dos cinco anos e início dos seis anos de idade, as crianças – em geral – possuem todas as condições necessárias para aprender a ler e escrever de forma sistemática. Quando deve terminar depende da complexidade da Sistema Alfabético de cada língua. Considerando que o sistema alfabético brasileiro tem grau de dificuldade considerado médio nas dimensões de opacidade e transparência, é possível alfabetizar as crianças brasileiras em um ano letivo.
Em recente entrevista para o jornal O Globo, o pesquisador e sociólogo Simon Schwatzman – que participou de um grupo da Academia Brasileira de Ciências que estudou o tema – foi categórico ao resumir muito bem a situação. Diz ele: “A alfabetização é crucial. Se a criança chega aos oito ou nove anos de idade analfabeta, dificilmente se recupera. Há uma espécie de consenso, inclusive no governo federal, de que a alfabetização tem que se completar até a 3ª série. Na verdade, tem que ser na 1ª série. A criança com seis, sete anos já tem que dominar a alfabetização para ter condições de acompanhar outras coisas”.
“Amadorismo”
A idade prevista para a alfabetização não é a única fragilidade da BNCC, segundo a visão de importantes especialistas da área. João Batista Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto, já registrou publicamente que a proposta de educação infantil é a mais amadora, e a proposta da alfabetização é carregada de “impropriedades, erros e omissões graves”.
Um dos problemas cruciais está na definição – ou na ausência dela – do que é alfabetizar. Em nenhuma das três versões apresentadas da BNCC, há uma definição clara de alfabetização ou do conjunto de habilidades estritamente relacionadas a este
processo. De acordo com o paradigma da Ciência Cognitiva da Leitura, alfabetizar significa dominar o código alfabético, ou seja, usar conhecimentos sobre as correspondências entre fonemas e grafemas para extrair o som da palavra. Mas isto não está na BNCC.
Outra questão se refere ao fato de que a proposta está baseada em uma abordagem silábica, o que é um equívoco, tendo em vista que Língua Portuguesa não é silábica. E, embora os documentos de introdução e divulgação da BNCC afirmem que a Base não trata de métodos, nos detalhamentos pertinentes à alfabetização há diversas recomendações – infelizmente equivocadas do ponto de vista científico – sobre como alfabetizar.
Há também omissões importantes, como a questão da caligrafia. A proposta privilegia dispositivos eletrônicos em detrimento do ensino e treino da escrita manuscrita. Se este é o tipo de escrita exigido por avaliações, vestibulares e concursos públicos, por que ela é ignorada na BNCC. A palavra caligrafia não é mencionada uma vez sequer, no documento preparado pelo MEC.
Além disso, a fluência com que o aluno pode escrever é fortemente associada ao esforço e aos incentivos para redigir. Portanto, se não ensinar a criança a escrever de forma eficiente, a escola estará conspirando ativamente contra o desenvolvimento das habilidades para redigir textos mais tarde. As evidências mostram a contribuição da caligrafia para a ortografia – ou seja, o aluno que escreve mais, escreve melhor. Se estiver disposto a abolir a caligrafia, o MEC deveria propor mecanismos alternativos para compensar as perdas em ortografia.
Por fim, vale ressaltar que o texto apresentado claramente não foi submetido a um verdadeiro debate, especialmente com especialistas que estudam o tema com abordagem científica. No Brasil, a alfabetização vem sendo tratada há décadas apenas na sua dimensão ideológica. O país possui pelo menos uma meia dúzia de pesquisadores que participam ativamente da comunidade científica internacional – mas eles não foram ouvidos. Nem foram considerados importantes relatórios como o da Câmara de Deputados, de 2003, e o da Academia Brasileira de Ciências, de 2010.
Cabe perguntar: qual é a legitimidade de uma proposta que não leva em conta a evidência científica nem se importa em debater com os principais pesquisadores brasileiros que participam da comunidade científica internacional nesse campo?